Me ajude, estou comendo lixo
José Ambrósio dos Santos*
Em 17.12.2020
O título lhe causou mal-estar, provocou enjoos? Você chegou a esta primeira linha na qual indago sobre a sua reação ao título. Isso significa que você se importa com o tema e não aceita como algo natural a fome que maltrata e mata todos os dias por esse imenso Brasil afora.
Pois bem, o título deste artigo foi tirado de uma placa de papelão exibida de forma inibida por um cidadão em um semáforo em Boa Viagem, Recife, no cruzamento das ruas Visconde de Jequitinhonha e Barão de Souza Leão, dois antigos representantes da nobreza brasileira responsável pela legitimação e perpetuação das desigualdades que só crescem em nosso país.
Aquele cidadão apelava por socorro: Me ajude, estou comendo lixo. Possivelmente, muitos dos veículos que transitavam naquele momento tinham em seus porta-malas produtos como peru, chester, queijo do reino, embutidos e bebidas, além de presentes (se aproximam as festas de Natal e Ano Novo). Quanta desigualdade.
Mas, se você acaba de chegar das compras ou se prepara para ir às compras, não se constranja. Não é esse o objetivo deste artigo, mas sim contribuir para a percepção das graves desigualdades socioeconômicas e denunciar o descaso das autoridades para com essas pessoas somente vistas por quem na maioria dos casos não pode fazer muito por elas.
Quantas pessoas aguardavam aquele envergonhado cidadão em casa ou em qualquer lugar (uma marquise, uma ruína, um viaduto, uma ponte…uma calçada…). Talvez a esposa e um mínimo de dois pares de filhos, média das famílias brasileiras nesse extrato social. O que levar para as crianças famintas?
Não é preciso andar muito pelo Recife e grande parte das cidades brasileiras para se deparar com a fome. Ela está estampada na face sofrida e desesperada de jovens, idosos e crianças tanto nas periferias como nos grandes centros, para onde muitos se dirigem em busca de solidariedade. Muitas dessas pessoas e famílias estão morando nas ruas.
De acordo com uma nota técnica do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), o número de pessoas em situação de rua no Brasil cresceu 140% entre 2012 e março de 2020, chegando a quase 222 mil pessoas. Em sua maioria, as pessoas em situação de rua encontram-se desempregadas ou em trabalhos informais, atuando como guardadores de carros e vendedores ambulantes, por exemplo, como destaca reportagem do Observatório do Terceiro Setor assinada por Mariana Lima.
Ela cita o estudo ‘Estimativas da População em Situação de Rua no Brasil‘, que utilizou dados de 2019 do censo anual do Sistema Único de Assistência Social (Censo Suas), que conta com informações das secretarias municipais. Outra fonte de dados para o levantamento foi o Cadastro Único (CadÚnico) do Governo Federal. No total, 81,5% da população em situação de rua está em municípios com mais de 100 mil habitantes, principalmente das regiões Sudeste (56,2%), Nordeste (17,2%) e Sul (15,1%).
Importante ressaltar que em 2020 18,5% da população de rua estava em municípios pequenos ou médios, indicando a necessidade de se pensar também em políticas públicas adequadas a essas localidades.
No total, até março o Brasil registrava 221.869 pessoas em situação de rua. A análise seguiu o modelo de contagem utilizado em 2015, quando foi lançado o último balanço pelo Ipea, utilizando os dados oficiais informados pelos municípios por meio do Censo Suas. No entanto, agora a pesquisa usa dados de mais municípios do que em 2015.
Esses municípios representam 84% da população total brasileira. Em 2015, a pesquisa usou dados de municípios que representavam 69% da população.
Essa triste realidade me fez lembrar de uma cena que presenciei há mais de 16 anos. Findava 2004, mais ou menos por essa época do ano. Eu estava no Terminal Rodoviário do Cabo de Santo Agostinho, que na época funcionava às margens da BR-101, próximo à principal entrada da cidade. No outro lado da avenida (Presidente Getúlio Vargas), sob uma marquise, algumas pessoas já haviam se recolhido a seus dormitórios na calçada, pois passava das 20h. A passos lentos em razão do peso do pequeno saco no qual carregava tudo o que amealhara em cinco ou seis décadas, chegava um cidadão cabisbaixo. Ele buscava um lugar para se agasalhar quando foi enxotado por outro, que talvez guardasse o pequeno espaço ainda disponível para outra pessoa.
“A vida no Lixão da Muribeca era vida animal. Urubu vivia melhor, porque é da natureza dele viver na carniça, do ser humano, não.”
Welington Luiz Nunes Monteiro
Outra imagem desse terrível quadro de desigualdades e fome ficou registrada em minha memória cinco anos depois. Em agosto de 2009, entrevistando um catador do Lixão da Muribeca (Jaboatão dos Guararapes), que acabara de ser extinto, ouvi do cidadão um triste relato: “A vida no Lixão da Muribeca era vida animal. Urubu vivia melhor, porque é da natureza dele viver na carniça, do ser humano, não”, disse Welington Luiz Nunes Monteiro. Na época ele tinha 41 anos de idade, sete dos quais vividos no aterro sanitário que fechou as portas no dia 16 de julho daquele ano, por força de Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) firmado pelo Ministério Público de Pernambuco (MPPE) e as prefeituras de Jaboatão dos Guararapes, Recife e Moreno.
Welington e outros 253 ex-catadores (cota definida pelo MPPE a partir da utilização do aterro (20%) passaram a ser assistidos pela Prefeitura de Jaboatão dos Guararapes. Passaram a receber uma bolsa no valor de um salário mínimo (prazo de seis meses) e a frequentar cursos de capacitação para a inserção no mercado de trabalho. Ele disse não querer para ninguém a tarefa que o fez em muitos momentos disputar restos de comida também com voracidade com outros catadores e até com urubus. A entrevista foi manchete do extinto jornal tabloide semanal Tribuna Popular. urubus.https://tribunapopular.wordpress.com/2009/08/18/lixao-da-muribeca-“urubu-vivia-melhor
Enquanto isso, em Brasília, em seus gabinetes e casas luxuosas, burocratas e o presidente Jair Bolsonaro cuidam de retirar direitos sociais conquistados sob muitas lutas populares e que beneficiam diretamente as pessoas mais necessitadas da atenção pública.
Enquanto isso, na Bahia, como resultado da Operação Faroeste, o Superior Tribunal de Justiça determinou o afastamento de quatro desembargadores e a prisão de uma desembargadora e de um juiz do TJ-BA. As prisões e afastamentos foram autorizadas pelo ministro Og Fernandes e ratificadas pela Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça. Os investigados são suspeitos de integrar um esquema de venda de sentenças em um caso de possível grilagem. Em muitos desses casos, a magistratura, tão repleta de privilégios, contribuindo para jogar mais famílias na miséria ao ‘expulsá-las’ de suas terras.
*José Ambrósio dos Santos é jornalista e membro da Academia Cabense de Letras.
Foto destaque: Morador de rua em Pontezinha, Cabo de Santo Agostinho – Jorge Luiz Bezerra
Muito bom o texto de Ambrósio sobre o cidadão que afirmava estar comendo lixo e clama por ajuda em plena BoaViagem.
Pois é, Rodolfo. Uma triste é inaceitável realidade.
Texto excelente que trata da realidade de muitas vidas. Infelizmente a população em situaçao de vulnerabilidade e risco social aumenta. Muitos trabalhos sendo realizados, alguns dão resultado e outros não. É de doer a alma ler relatos como esse presente no texto, pois já vi de muito perto famílias inteiras nessa situação, nos atendimentos que fazia em programas sociais. Crianças, adultos vivendo uma situação desumana na busca pela sobrevivência e o pior é perceber que os que manuseiam a caneta das verbas, fazem de conta q enxergam essa triste realidade….
Então, Vitalina. Situação inaceitável, mas que só se agrava.
Texto importante para pensarmos a triste e desigual realidade brasileira. Parabéns Ambrósio! Reflexão necessária. Políticas públicas precisam dar conta da realidade dessas pessoas em vulnerabilidade social.
Realidade horrenda do nosso cotidiano, Vera. E acabamos de sair de uma campanha política na qual candidatos e candidatas prometiam tudo resolver, enquanto governistas pintavam quadros coloridos de cidades bem resolvidas, acolhedoras.