Lembranças do Natal
Mirtes Cordeiro
Em 21.12.2020
Natal para mim sempre foi uma festa cultural e histórica que aguardo até hoje como um momento para ficar em casa com a família e renovar votos de felicidades e boa convivência. Claro, o objetivo da festa, comemorar o nascimento de Jesus, para muitos considerada uma lenda.
Nasci e vivi até os quinze anos no município de Ipu, no Ceará, ao pé da Chapada da Ibiapaba. A região é linda, uma mistura de sertão e montanha.
O sertão, formado no ambiente da caatinga, cruzado por grandes rios secos, assim definidos porque se tornam caudalosos no período de chuvas e secam no período de estiagem, conforme o clima do semiárido.
A chapada, também conhecida como Serra Grande, com suas montanhas, recheada de muitos encantos naturais, lindas cachoeiras e abundante vegetação, onde são encontradas algumas espécies de fauna e flora das florestas de mata atlântica convivendo naquele microclima.
Sertão e montanhas compõem o espaço territorial do município em relação permanente, respeitosa, solidária e sábia até então.
A minha infância e adolescência formaram a base da minha personalidade neste mundo mágico em que a natureza era o abrigo das nossas vidas e dos nossos sonhos, intercalados pelos estudos, pelas brincadeiras ao ar livre, tocando violão, colhendo frutas e tomando banho nas cachoeiras.
Assim crescemos, em bando, construindo amizades. As famílias se conheciam e pais, mães e tios e professores eram vigilantes. Cuidavam de todos. Ainda não havia chegado até nós a perversidade das drogas.
O Natal se transformava numa grande festa para a cidade inteira a partir do meio do ano. As famílias se preparavam para receber os parentes. Muitos vinham de longe porque tinham viajado para o sul do país, em busca de trabalho, fugindo um pouco da situação de pobreza. A primeira grande empresa criada para transportar candango para a construção de Brasília era da minha cidade e chama-se Ipu Brasília.
Os comerciantes se preparavam para as vendas de fim de ano, sobretudo as lojas de tecido e de presentes. Ainda não havia roupas industrializadas e as lojas tipo Americanas, feito hoje. Era no final do ano que todos ganhavam dinheiro, mas havia uma exceção, quando o natal era precedido de um ou mais períodos de seca, porque a grande maioria que vivia da pequena agricultura familiar não conseguia produzir milho, feijão e algodão nas terras do sertão. Já para os que moravam nas montanhas da Serra Grande, a situação era mais amena porque o clima e as terras férteis conseguiam sustentar os plantios de café, cana de açúcar para produção de rapadura e cachaça, frutas, legumes, batatas, produtos que eram expostos para venda na grande feira da cidade, aos sábados.
Mesmo com as intermitências da vida com relação à sobrevivência, as festas religiosas, sobretudo o Natal e a festa do padroeiro, São Sebastião, que acontecia no mês de janeiro, eram grandes acontecimentos, porque eram alimentadas pela fé que a população tinha e que fazia acreditar que em algum tempo haveria a melhora, haveria chuva todos os anos, as famílias não mais se separariam mandando os homens à Brasília ou São Paulo para trabalhar e sustentar, de longe, os filhos…
Na época do Natal a população, entusiasmada pela fé, se ocupava da organização da festa à sua maneira. Claro que a responsabilidade maior era da Igreja Católica. Nem havia outras denominações religiosas. A festa do nascimento de Jesus era quase comunitária. Ainda não se sabia da presença de ateus na cidade que questionassem o monopólio das almas pela Igreja Católica e muito menos que colocassem em questão a narração da bíblia. Seria considerado uma heresia compatível com as heresias combatidas na Idade Média (período da história que se entendeu do século 5 ao século 15).
A igreja organizava os seus rituais e a sua estética natalina com grande iluminação, colorindo o seu prédio, e montando uma grande lapinha – a representação popular do presépio, com o menino Jesus ao meio, num ambiente bem rústico – seguindo a tradição desde o Natal de 1223, quando São Francisco de Assis criou pela primeira vez, um presépio para melhor explicar o grande acontecimento para o mundo, o nascimento de Jesus, o seu Salvador.
As famílias também faziam os seus presépios, sendo algumas casas visitadas, sobretudo aquelas que conseguiam expressar maior criatividade, desenvolvendo a capacidade de criar o ambiente mágico na mente de todos, sobretudo das crianças. Quem não visitou o presépio da casa do Sr. Pedro Tavares? E quem não se encantou quando criança, com o menino nascido pobre na manjedoura, determinado por Deus para salvar a todos do que era desigual, perverso e mal?
A narrativa dos presépios, fundamentada na crença religiosa, guarda a lembrança da história de vida das famílias mais pobres e suas dificuldades da vida cotidiana. Encontramos presépios vivos nas ruas quase todos os dias… na verdade os presépios narram as desigualdades entre pessoas, famílias, povos. Não podemos esquecer que o nosso país, o Brasil é um dos países mais desiguais do mundo.
Foi há 76 anos que nasci numa família pobre, três dias após a noite de Natal. Meu pai e dois tios eram alfaiates da região e as suas mulheres eram costureiras. Revendo a história, segundo alguns historiadores, na verdade eram famílias de artesãos. A profissão de alfaiate vem de longe, definida como uma das mais antigas do mundo. A palavra em português tem origem no vocabulário árabe, que significa coser, juntar com as agulhas. “De uma forma ou de outra, o papel do alfaiate como conhecemos agora surgiu junto com a tão falada Moda… com o Renascimento veio a acentuação da forma humana. O manto solto, aquele uniforme padrão do período medieval tão facilmente construído a partir de uma única peça ou dois de pano, foi encurtado e apertado, e eventualmente cortado… e costurado em tentativas de trazer proeminente os contornos da forma humana. Este foi o nascimento de costuras e, de fato, da moda. Essas tentativas de reconstruir o corpo humano em tecido exigiam uma crescente habilidade especialista e divisão do trabalho. Foi aí que o papel do alfaiate cresceu nas sociedades”. (Via Santony, in Alfaiate a profissão que atravessa os tempos)
Na minha casa, com as mais variadas habilidades artísticas dos costureiros, o Natal se revestia de toda beleza que pudesse ser criada pelos meus pais, desde as roupas brancas bem feitas de tecidos de linho ou organdi, à árvore no formato de um pinheiro, planta que não existia na região, mas fazia parte do imaginário.
A noite era realmente bela, impactante. Após o jantar com peru criado em casa, e as rabanadas que recebiam o nome de fatias paridas, tudo preparado com todo requinte da cozinha regional, por minha mãe, todos íamos à Missa do Galo, que se iniciava à meia noite com os cantos gregorianos. Claro que as crianças que eram levadas à missa não conseguiam tanta tranquilidade durante o ritual que apesar de bonita, era celebrada e cantada em latim, ou seja, só o padre sabia o que estava dizendo. Mas todos acreditavam numa vida melhor que se renovaria a cada canto e a cada oração. Ao final, as crianças saíam carregadas dormindo, nos braços dos adultos.
Apesar da missa falada em Latim, o tempo do Natal era permeado também por um estado de espiritualidade manifestado nas orações, na solidariedade organizada pelas mulheres. Para nós, crianças, era como se o tempo parasse para um resgate de algo que faltava na vida das pessoas. É que só crescendo começamos a entender sobre os desafios da vida.
O Papai Noel era esperado durante a noite para entregar os presentes, como manda a lenda, e por isso, antes de deitar, os pequenos deixavam os sapatos na porta do quarto. No outro dia, estavam lá os brinquedos. No ano de boas chuvas, gerando recursos para a economia, os presentes eram mais interessantes, mas tivemos anos em que os sapatos receberam apenas bombons em saquinhos de papel celofane colorido.
Somente aos 10 anos de idade, procurando algo num baú onde se guardavam redes para dormir, nas proximidades do Natal, encontrei os brinquedos sem a embalagem aguardando a noite mística. Sendo a filha mais velha curti sozinha a desilusão do acontecimento e esperei que meus irmãos tivessem mais uma vez uma noite de grande beleza e encanto.
Anos, décadas se passaram, o mundo mudou muito e apesar das boas conquistas da modernidade que nos possibilitam maior tempo de vida, o acesso mais fácil ao conhecimento, a entrada das mulheres no mercado do trabalho e à várias profissões, que todas as crianças têm direito à escola, ainda não conseguimos experimentar a magia de uma vida em que fôssemos salvos da desigualdade, das perversidades e das maldades que também o mundo moderno oferece. Isto porque a suposta salvação depende de nós, da nossa capacidade de criar formas de vida melhor.
Então, a história que se reproduz a cada ano sobre lenda do nascimento do salvador do mundo, faz parte também da nossa necessidade de ser feliz, de acreditar no amor, de inventar uma situação que faz bem ao imaginário, da busca de uma utopia.
Agora, mais que nunca, neste tempo de pandemia, é preciso celebrar um Natal, compreender como sua magia dissimula as dificuldades, mas, ao mesmo tempo, nos permite sonhar. E o sonho é necessário para melhor dimensionar a nossa realidade, com segurança, com solidariedade. Mais que tudo se preservar e preservar o outro contra o vírus, lutar pela vacina e para que a vida possa melhorar, que os pobres possam ter vida digna, que se tenha menos opressão, que os direitos conquistados sejam de fato garantidos.
Que os meus netos demorem a descobrir que Papai Noel não existe e não deixa os presentes nos sapatos…
*Mirtes Cordeiro é pedagoga. Escreve às segundas-feiras.
Este texto nos convida a fazer uma boa reflexão sobre o Natal .Que excelente experiência vivida pela cronista,me fez lembrar dos meus natais que ficou na minha lembrança do Natal de quando criança ,quando falou nos tecidos para confecção das roupas lembrei que éramos 08 filhos 04 meninos e 04 meninas e que os nossos vestidos eram do mesmo tecidos..iguais para nós quatro e do mesmo modelo,e ficávamos todas felizes…hoje isto não existe mais,penso que do nosso jeito talvez fôssemos mais felizes e o espírito de Natal mais presente,a missa do galo a ceia com peru do quintal.Adorei o texto porque me fez lembrar a minha história e os meus Natais.