O mundo é uma construção nossa

Por

Vera Lúcia Braga de Moura*

Em 07.01.2021

Iniciamos um novo ano e com ele vêm novos desafios e aspirações. Qual o nosso lugar no mundo? Como estabelecemos nossas relações? O que nos faz felizes? Essas indagações nos permitem ampliar o nosso olhar e nos percebermos como parte integrante do mundo. Pensar nas nossas interconexões. A nossa identidade é relacional. Só nos conhecemos a partir das nossas relações com outras pessoas. A alteridade mostra essa perspectiva de se reconhecer com base no outro. Daí, o ser humano consegue ter consciência de si mesmo, do outro e do mundo. A nossa consciência é de natureza social, não conseguimos seguir sozinhos, necessitamos do outro para significar as nossas vivências. Quem é o outro nesse contexto relacional? O outro é todo ser humano que encontramos e nós somos o outro para aquele que cruzamos nas nossas histórias. O outro somos nós.

Nessa direção é importante pensar que a imperfeição, as falhas, os equívocos também fazem parte da vida. A incompletude e as imperfeições compõem o fazer humano. Busquemos ser o melhor possível, mas compreendendo os nossos limites. Assim, sigamos enxergando a nós como aprendizes na seara da vida, inconclusos e imperfeitos, pois, dessa forma, possibilita-nos enxergar o outro de uma perspectiva mais flexível e ampla. É importante observarmos que, de forma mais alargada, a vida vai criando um contorno de acordo como a gente vai se relacionando com as pessoas e com as coisas. Para se ter uma sociedade equitativa, harmônica, respeitosa é necessário que cada um/a faça o seu movimento de transformação. O outro sou eu. O outro somos nós.

E como eu, sendo também o outro, me coloco nesse contexto relacional?

“O inferno são os outros.” Nessa célebre frase, o filósofo francês Jean-Paul Sartre mostra o quanto é complexa a convivência humana. Os outros são as grandes causas dos conflitos humanos. E como eu, sendo também o outro, me coloco nesse contexto relacional? Que mundo é esse que compomos, pertencemos, criamos que tanto nos assusta, muitas vezes, pela toxidade das múltiplas violências?

Violências que impetramos contra outros seres humanos, desconsiderando a nossa interdependência, quando excluímos, estigmatizamos, ignoramos, julgamos, ferimos. O impacto que nós humanos causamos na terra, como registra Ailton Krenak (2020, p.43), na obra “Ideias para adiar o fim do mundo”, que, em algumas culturas, a terra “continua sendo reconhecida como nossa mãe e provedora em amplos sentidos, não só na dimensão da subsistência e na manutenção das nossas vidas, mas também na dimensão transcendente que dá sentido à nossa existência”.

De forma muito lúcida e responsável, Ailton Krenak (2020, p.44) nos ensina que vivemos como se “estivéssemos soltos num cosmos vazio de sentido e desresponsabilizados de uma ética que possa ser compartilhada, mas sentimos o peso das nossas escolhas sobre as nossas vidas. Somos alertados o tempo todo dessas escolhas recentes que fizemos. E se pudermos dar atenção a alguma visão que escape a essa cegueira que estamos vivendo no mundo todo, talvez ela possa abrir a nossa mente para alguma cooperação entre os povos, não para salvar aos outros, mas para salvar a nós mesmos”.

Estamos nos exaurindo como seres humanos. Tudo parece que é mensurável e transformado em mercadoria.

Precisamos urgentemente, como ressalta o líder indígena, resolver esse dilema que aflige a todos nós, que é a sustentabilidade da terra, nosso ethos, nossa morada. Estamos exaurindo as fontes de vida na terra. Estamos nos exaurindo como seres humanos. Tudo parece que é mensurável e transformado em mercadoria. Estamos com nossas práticas sociais equivocadas, autocentradas, individualistas e hedonistas, negando a vida e excluindo o outro. Precisamos assumir uma postura de compromisso com a vida e com toda forma de vida na terra, passar a enxergar e acolher com responsabilidade, afetividade e amorosidade os outros seres humanos.

Ailton Krenak (2020, p.50) traz a perspectiva de sonho, não como dormir e sonhar, mas como o exercício para buscar no sonho as diretrizes para as nossas escolhas do cotidiano. Para algumas pessoas, a ideia de sonhar, como lembra ainda o indígena, é “renunciar ao sentido prático da vida”. Contudo, existem também pessoas que encontram no sonho seu sentido da vida, nos quais podem buscar “os cantos, a cura, a inspiração e mesmo a resolução de questões práticas que não conseguem discernir, cujas escolhas não conseguem fazer fora do sonho, mas que ali estão abertas como possibilidades”, afirma ainda o indígena.

O sonho está muito ligado a utopia. Caminhos esses que podem nos permitir um olhar mais alargado, mais amplo, flexível, afetuoso com a vida. O sonho e a utopia podem possibilitar a interação entre as pessoas, a vida, o mundo. O sonho nos ensina a migrarmos para o mundo interior do autoconhecimento. Possibilita-nos entrelaçarmos na dança da vida com o outro. A utopia é o movimento que nos mostra a perspectiva de convivências éticas, prazerosas, alegres, saudáveis, amorosas; ensina-nos a construirmos um mundo melhor.

Vamos desapegar desses conceitos todos. Vamos nos libertar. Vamos ampliar nossas visões pragmáticas, apegadas, engessadas e sair da caixinha.

Antropoceno, termo formulado por Paul Crutzen, Prêmio Nobel de Química de 1995, significa época dos humanos. Tem um significado muito forte sobre a nossa existência e sobre a ideia do que é humano. Essa visão Antropocena é muito rígida, fixa. Gera uma ideia de humanidade, paisagem com muita fixidez, como diz Krenak. Vamos desapegar desses conceitos todos. Vamos nos libertar. Vamos ampliar nossas visões pragmáticas, apegadas, engessadas e sair da caixinha. Vamos desafiar, de certa forma, o que está posto e pensar e construir outro mundo, outras relações em que o centro seja a vida humana, a vida dos outros seres, a terra, em que a gente aprenda a respeitar e acolher o outro nas suas diferenças e singularidades.

O adorável líder indígena diz que devíamos aceitar a “natureza como uma imensa multidão de formas, incluindo cada pedaço de nós que somos parte de tudo”. E a gente, na nossa limitada visão de mundo, cria estereótipos de que existem formas de ser e viver padronizadas, medidas criadas arbitrariamente, que se fugir dessa forma de amar, de conviver, de se vestir, de trabalhar, de existir seremos banidos da vida em sociedade. Com isso, surgem os excluídos, os consumidores falhos, nos termos de Zygmunt Bauman, da sociedade líquida moderna, cujos laços humanos tendem a ser cada vez mais frouxos e frágeis.

Bem, se olharmos ao nosso redor, responsavelmente, veremos explicitamente um caos. Crise pandêmica, crise social, crise humana. Perda de qualidade nas nossas vidas. Somos seres ocupados demais. Essa sociedade líquida moderna, viciada em consumo capitalista, impõe-nos uma corrida insana pela sobrevivência. Esse abismo caótico que compromete as nossas relações, a nossa saúde mental, emocional e orgânica precisa ser aplacado.

Assim, aspiro que a lucidez e a sensibilidade nos envolvam e que busquemos construir outro mundo, outras relações, outras humanidades, onde nos confortemos com a presença do ser humano, com o seu jeito de ser. no qual aprendamos a escutar uns aos outros; que sintamos o imenso prazer do convívio humano; que nos inspiremos diariamente no sonho e na utopia de viver um mundo com seres humanos acolhidos e amados infinitamente.

*Vera Lúcia Braga de Moura é professora e doutora em História. Gerente de Políticas Educacionais de Educação Inclusiva, Direitos Humanos e Cidadania. SEDE/Secretaria de Educação e Esportes do Estado de Pernambuco. Escreve às quintas-feiras.

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