Que vença a Ciência

Por

Mirtes Cordeiro*

Em 25.01.2021

Em seu livro “Os Inimigos íntimos da Democracia”, o professor e pensador búlgaro Tzvetan Todorov chama a atenção para as relações no estado democrático no que se refere ao respeito ao coletivo, mas também aos direitos individuais de cada ser humano: “No seio de uma democracia, ao menos teoricamente, todos os cidadãos são iguais em direitos, todos os habitantes são iguais em dignidade”.

No Brasil o enfrentamento à pandemia denunciou muitas situações que a nossa frágil democracia esconde com muita veemência, como a desigualdade social, que para muitas famílias chega a ser degradante. O País tinha mais de 14 milhões de famílias em situação de extrema pobreza inscritas no Cadastro Único em outubro de 2020, com renda per capita de até R$ 89, fora aquelas que vivem ainda sem apoio algum, em situação de miséria. Também os baixos indicadores de aprendizagem escolar e as dificuldades enfrentadas pelas populações ribeirinhas,  indígenas, quilombolas e outros segmentos, para figurarem como cidadãos de direitos nas políticas públicas.

Além disso, o racismo estrutural como se expressa na sua arrogância e a matança sem freio das mulheres durante a pandemia, que não nos deixa fechar os olhos para essa questão ultrajante.

Mas, o que mais deixou marcas internamente em nosso país e para o mundo foram as desigualdades de pensamento quanto ao funcionamento das instituições democráticas e a falta de conhecimento do presidente da República quanto a sua verdadeira função.

Não reconheceu que podia ser um líder, mesmo sem ser, tendo galgado um cargo reservado a alguém que desenvolva a capacidade de liderar seu povo.

De início, tratou de não reconhecer a covid-19 como uma doença letal e convocou a todos a enfrentar o vírus adotando costumeira postura machista, chamando os brasileiros de “maricas”. Enfrentou a ciência, desdenhou dos conhecimentos científicos, desautorizou o Ministério da Saúde a contratar a compra de vacinas, travou uma verdadeira guerra política com o Instituto Butantan e a FIOCRUZ com relação a possibilidade dessas históricas instituições realizarem estudos e promover a fabricação da vacina e atropelou a tradição da diplomacia brasileira ao promover, o presidente e sua família, ataques ao principal parceiro comercial, inclusive para aquisição da vacina, a China.

Em todos os países do mundo, governantes se empenharam em desenvolver ações que vencessem o desconhecimento sobre o vírus e sobre a doença por ele provocada e logo intensificaram os estudos elucidativos para a fabricação de vacinas, sobretudo a China, o Reino Unido, os Estados Unidos e a Rússia.

No Brasil, pandemia, vírus, vacina se transformaram em instrumentos de luta política pelo poder, com sustentação de caráter negacionista. Os estados nordestinos criaram um comitê científico. Outros estados instituíram suas assessorias científicas, mas nem todos se ocuparam em difundir com clareza os males causados pelo vírus e as estratégias de isolamento necessárias à preservação da vida.

Na verdade, a democracia brasileira foi vítima de um dos maiores de seus inimigos íntimos, segundo Todorov, o populismo.

O populismo de direita exercido pela presidência da República aliada a alguns governadores e deputados desprezou os meios de comunicação, valorizou o contato direto com o povo, passando ao largo das instituições. O presidente mente descaradamente, conta histórias fantasiosas para seus seguidores, muda de posicionamento ao sabor da opinião pública e promete feitos inexequíveis.

Segundo Leonardo Weller, do Latinoamérica, o problema é que, com isso, o presidente periga afundar o país em crises, sobretudo com relação à sustentabilidade das contas públicas, um grande desafio da economia brasileira.

O Brasil chegou atrasado no processo de vacinação porque o governo apostou no negacionismo, ficando contra a ciência, desperdiçando a oportunidade não só para comprar, mas para fabricar a vacina.

O Instituto Butantan e a FIOCRUZ, de respeitado reconhecimento mundial, poderiam ter partido na frente na luta para fabricação da vacina e teríamos evitado as mortes e a contaminação de tanta gente.

Fica claro que o governo não tem a dimensão do que está acontecendo no seio da população e do que poderá resultar das sequelas da pandemia na sociedade. Não só o desemprego a desestruturação econômica, mas os problemas mentais que provocarão a desorientação diante da vida.

Agora sabemos que teremos a vacina, de forma atrasada, obedecendo a dura concorrência de mercado e as dificuldades diplomáticas. No entanto, não encontramos consistência no plano de vacinação do Ministério da Saúde, porque muda ao sabor da ventania política, tangida pela vontade do presidente de ser vitorioso nas eleições de 2022.

Várias categorias de seguidores políticos do presidente já foram contempladas no referido plano. Porque não se ouve mais uma vez os especialistas?

Segundo R Guzzo, em artigo no Estadão, “o início da vacinação em massa contra a covid deveria ser um momento de esperança, de apoio aos que têm de ser imunizados com mais urgência e, em geral, de solidariedade e espírito público. Não está sendo assim. Em vez disso, mal foi aplicada a primeira dose, começaram a estourar por todo o País denúncias de desrespeito grosseiro ao cronograma da vacinação, com os que mandam e influem na máquina estatal furando a fila em favor de si mesmos, de parentes, de amigos e de amigos dos amigos”.

Estamos cada dia observando que vence a ciência e é preciso ter a consciência de que vivemos numa democracia, onde devemos considerar que todos somos cidadãos iguais em direitos e somos também habitantes iguais na dignidade. Reconhecer o valor da ciência e usá-la para o bem de todos é também dever de todo governante ou preposto de governante.

Nesse momento nos damos conta dos ensinamentos do professor Tudorov, de que os inimigos internos estão espreitando, fortalecendo o populismo, ampliando a desigualdade e dificultando a vida da maioria da população em vários aspectos, inclusive em questões fundamentais como o direito a se vacinar contra o vírus.

Pois eu tenho 76 anos e estou esperando a hora de receber a vacina.

No entanto, no meu entendimento, tem até pessoas mais novas que eu, profissionais que estão trabalhando dia e noite, como entregadores de alimentos, trabalhadores dos transportes públicos, professores etc…, que teriam prioridade além dos mais velhos que permanecem em casa, enfim, àqueles que se contaminados podem transmitir o vírus com mais frequência.

Que vença a Ciência e que possamos vacinar a todos! Antes que aumentem o número dos mortos.

*Mirtes Cordeiro é pedagoga. Escreve às segundas-feiras.

Os textos aqui publicados não refletem necessariamente a opinião do blog Falou e Disse.

Foto destaque: internet – Vanuza Kaimbé, primeira indígena vacinada no Brasil.