A morte social
Jairo Lima*
Em 03.02.2021
Belchior nasceu numa família abastada e, seguindo os passos do pai, tornou-se um empresário bem sucedido, um milionário em permanente ascensão. Com o advento da Covid-19 entrou em desespero total. Tinha pavor da morte, era pouco afeito à religiosidade e muito menos ao próprio Deus.
Zé Paulo teve um destino bem diferente. Nasceu e se criou na favela do Coque, no Recife. Sempre foi pobre, homem honesto e muito trabalhador. Todas as quartas-feiras e aos domingos ia com a família à igreja. Também temia a morte, muito embora fosse mais tranquilo. Não criava nóias e fantasias infernais, apesar de escutar muito sobre essas coisas dentro da igreja. Com a pandemia, passou a adotar alguns cuidados que aprendeu ouvindo programas de rádio.
Belchior há 25 anos havia contratado Zé para ser seu motorista. Mesmo lhe servindo por mais de duas décadas, Zé nunca foi intimo de Belchior, que sempre deixava claro querer uma relação apenas de patrão. Como os dois tinham a necessidade de compartilhar o mesmo automóvel blindado, de vidros escuros e com o ar-condicionado sempre ligado, Belchior foi alertado para o fato de que poderia contrair o novo coronavírus através do seu motorista, e isso lhe apavorou ainda mais.
Correu à farmácia e deu de presente para Zé um grande kit preventivo, contendo álcool gel, máscaras importadas, vitamina D, Centrium… além de uma farta cesta de frutas e legumes e ainda garantiu:
– Meu grande amigo, se por acaso alguém da sua família adoecer, não faça cerimônias, pagarei o tratamento no melhor hospital particular do Recife.
E sem seguida providenciou que a sua empresa de construção reformasse o barraco do seu motorista, dotando-o de mais condições de higiene e saneamento básico.
Passado um mês, Belchior precisou ir a Londres, onde passou nove dias num encontro internacional de empresários da construção civil. Na volta, ainda dentro do seu jatinho, começou a tossir e sentir o corpo febril. Internado logo quando aterrissou, faleceu intubado na UTI.
Zé continuou trabalhando na empresa por mais cinco anos, até que se aposentou. Dirigia para o Dr. Marcelo Couto, filho de Belchior, um amigo que fez numa convivência de meia década.
*Jairo Lima é poeta, escritor, artista plástico e membro da Academia Cabense de Letras.
Foto destaque: amazonasatual.com.br
Interessante a sua crônica Jairo. A finitude humana é certa, porém a forma que partiremos é incerta e como lidamos com a morte faz toda a diferença. Gosto muito do livro de Cláudia Arantes, A morte é um dia que vale a pena viver, pois mostra a morte como um processo natural da vida e nos dar dicas importantes para aceitar e aprender a morrer! Parabéns pela crônica!