SALA DE CINEMA – ‘O Diabo de Cada Dia’ e o fatalismo da violência

Por

Pedro H. Azevedo*

Em 31.01.2021

Dirigido por Antonio Campos, cineasta norte-americano mas com raízes brasileiras (seu pai é o jornalista brasileiro conhecido por apresentar o programa Manhattan Connection, Lucas Mendes), O Diabo de Cada Dia é uma produção da Netflix que chama a atenção inicialmente pelo seu elenco repleto de grandes estrelas de Hollywood. Temos Tom Holland (Homem-Aranha: De Volta ao Lar), Robert Pattinson (O Farol), Sebastian Stan (Capitão América 2: O Soldado Invernal), Mia Wasikowska (Alice no País das Maravilhas), Jason Clarke (Planeta dos Macacos: O Confronto), Bill Skarsgard (It – A Coisa), além de Haley Benet (A Garota no Trem), Harry Melling (Saga Harry Potter) e a neta de Elvis Presley, Riley Keough (Docinho da América). Todo esse incrível elenco serve para materializar com qualidade os vários personagens, que são os elementos mais importantes dessa história, do romance O Mal Nosso de Cada Dia, do escritor Donald Ray Pollock, obra que foi adaptada para as telas pelo próprio Antonio Campos junto com seu irmão Paulo Campos.

No filme, somos apresentados a uma cidade do interior dos Estados Unidos e alguns habitantes dessa região em múltiplas tramas que se cruzam ao longo dos anos e preservam entre si comentários sobre a relação dos homens com desejos e ações que revelam aspectos perversos da natureza humana, tendo como centro de tudo isso Arvin, feito brilhantemente por Tom Holland, um jovem que guarda dentro de si traumas familiares e sociais. É através dessas diversas histórias que o filme vai construir, por meio de um forte tom pessimista e visceral, um panorama sobre a natureza humana e a contínua propagação da violência e barbárie através de valores tradicionais como a religião, o Estado e a família.

O filme possui uma postura bem rígida com a narrativa e escolhas formais que ressaltam a sobriedade daquela realidade (elementos como a fotografia em película, o ritmo mais calmo e o uso preciso da trilha sonora são exemplos disso), algo que lembra os trabalhos de Paul Thomas Anderson, principalmente os excelentes Sangue Negro (2007) — no desvelar de uma realidade perversa que aflora naturalmente — e Magnólia (1999) — na utilização de uma multitrama repleta de acasos que apontam para um sentido final, uma constante percepção de destino, porém, com uma conclusão totalmente oposta à que o filme de Thomas Anderson chega, um Magnólia de sinal trocado —, uma apropriação que funciona bem para trazer o tom necessário de seriedade e peso à história contada.

Como dito anteriormente, é o interior dos EUA o cenário que o filme escolhe para contar sua história. Cenário ideal para marcar a ideia de uma natureza perversa do homem, já que é uma região que historicamente preserva um tradicionalismo social que está ligado a uma visão de mundo mais empírica e que também destaca a integração do ser humano com a natureza. Não é à toa que as cenas mais fortes de violência acontecem em belas florestas e lagos. Antonio Campos parece a todo momento querer ressaltar a maldade como a condição ou o estado primordial do homem.

Outra escolha inteligente de Campos é a narração em off que liga as diversas tramas do filme. Chama a atenção o fatalismo que o filme ganha com isso. É principalmente por meio dela que Campos vai construir toda uma sensação de inevitabilidade que afoga aqueles personagens imersos em um mar de violência e hipocrisia. O narrador — voz feita pelo próprio escritor do livro original — fala sempre em um tom de pesar e inevitabilidade. Em vários momentos ele antecipa o futuro trágico dos personagens, quase como se dissesse que tudo o que vemos já está escrito e é impossível de mudar. Com isso, ele é capaz de apresentar a violência constante como um ciclo inevitável, algo passado entre as gerações, um legado maldito, sendo o protagonista o exemplo principal dessa incapacidade de fugir de um cruel destino herdado. Suas atitudes são como um mero reflexo do passado; ele comete os mesmos erros do pai e precisa agir com a violência como único meio capaz de se relacionar com um mundo permeado de um mal quase onipresente na sociedade. Um hobbesianismo totalmente desiludido e desesperançoso, se é que isso é possível.

A visão pessimista do autor sobre a natureza humana, principalmente os homens, é materializada através da violência, mas é atestada e revelada pelo modo como os personagens lidam com a religião, algo que o filme vai dar muita relevância. Muito mais do que um instrumento de religação com o transcendental, a religião aqui é mostrada como um veículo que institucionaliza e justifica os sentimentos destrutivos dos homens. Assim, no filme, o primeiro pregador busca a Deus como instrumento capaz de extinguir seu medo, de aumentar suas forças, torná-lo mais másculo, e, para ele, a prova disso só pode vir através de um ato de violência e a sua superação; o pai do protagonista, como uma força que apazigue sua alma atormentada e cruel, e, quando isso não for possível, como algo que autentique a sua violência; o jovem e falso pastor, como algo capaz de esconder sua perversão e maldade; e, por último, o personagem de Jason Clarke, como a representação da aceitação total dessa condição, e que por isso faz o caminho contrário, em vez de buscar Deus para se relacionar com a sua natureza perversa, se entrega à mais completa corrupção da alma como único modo de encontrar Deus: tornar-se o diabo para se aproximar de Deus e não encarar o niilismo que se apresenta como resposta óbvia a isso tudo. Todos esses personagens e as consequências dos seus atos vão construindo o caminho do protagonista, um caminho de tragédia que parece inevitável para ele.

*Pedro H. Azevedo é concluinte de Engenharia Mecânica. Escreve e administra a página Um Toque de Cinema no Instagram. Escreve aos domingos.