A mutação

Por

Ayrton Maciel*

Em 31.01.2021

Num domingo como hoje, há 15 dias, a primeira brasileira foi vacinada contra a Covid-19, em São Paulo. Foi o início do processo de imunização dos 210 milhões de brasileiros, embora atrasado devido a boicotes de “contras”, para conter a maior praga sanitária dos últimos 100 anos, uma pandemia de proporções gigantescas na saúde e na economia do planeta. A vacina é o único mecanismo cientificamente comprovado de proteção, mas a vacinação tem avançado a fórceps no país, em razão da negação de quem deveria liderar a erradicação – e seus obcecados seguidores -, nem que fosse por estratégia política oportunista.
Passadas duas semanas, e apesar de apenas dois milhões de vacinados, à luz da ciência a vacinação avança no Brasil e já se enxerga uma luz no fim do túnel. Sem zombaria, digo, não há registro – até o momento – de mutação humana entre os brasileiros. Nenhuma anotação nas pranchetas do Butantan e da Fiocruz, nem registro de profissional de saúde sobre reação anômala. Sequer indício de mutação genética, anatômica e fisiológica da forma humana. Nem mesmo transcrição de cientista sobre suspeitas de alterações em pés e mãos, aparentando transformação em patas, ou sobre repuxos na região sacro/cóccix e púbis.
Sabe-se, até o momento, que uma clara, ostensiva, redundante, acintosa e provocativa mutação – para desgosto da cegueira ideológica – é a do humor na forma humana. Experiência pessoal vivida há dois dias, quando levei uma familiar de 87 anos para tomar a vacina, dez meses depois dela vir cumprindo rigoroso e disciplinado isolamento. Sem preocupação com a nacionalidade, vibrou como que numa mutação para a liberdade, reação natural que tem sido documentada pelo mundo. Rodar o Recife depois de meses vendo o sol pelas janelas e varandas é uma dupla satisfação. Será isso felicidade? Sensações de alívio e segurança vividas instantes antes por uma senhora perto dos 100 anos.
Multiplicadas por milhões, essas sensações serão a pandemia pós-Covid. Após a pandemia, os egoístas e acumuladores poderão até não ter mudado e os maus continuarem a ser maus, mas a leveza predominará. Os bem-humorados vão ser os “chatos”, os insuportáveis, os “inimigos” ideológicos dos ambientes negacionistas. Esses odeiam ser felizes? Em meio a essa plenitude de libertação pela vacina, nos questiona a metafísica: por que há pessoas que odeiam a felicidade? Por que há quem não se sinta bem em saber que os outros serão felizes? Por que há quem condene a ciência, o saber, duvidando do bem que podem causar? Por que felicidade pode ser tão pouco?
Há duas respostas para esse autoquestionamento: uma, pessoas que optam pela negação por desformação ou falta de formação, um espaço vazio que só a escola pode ocupar. Não há polêmica sobre o que veio primeiro, família ou escola, nem dúvida sobre que a escola é que forma os indivíduos, que vão formar suas famílias. Família e escola se complementam, formam caráter. Se é um processo que se reproduz, por que há os maus-caracteres ou os sem-caráter? Porque há falhas em uma das duas ou em ambas ou porque se está no campo da psiquiatria.
O bem sempre foi argumento, o mal sempre foi poder.
Duas, pessoas que se opõem ao racional, ao ético, à igualdade e ao justo e pessoas que se contrapõem ao desigual, ao místico e à religiosidade, ambas por questão ideológica. Alguém se contraporia ao bem por posição ideológica? Certamente, sim. Neste últimos cem anos, Hitler, Stálin, Mao, Mussolini, Pol Pot, Idi Amin e generais latino-americanos e africanos foram responsáveis por milhões de mortes. Antes, em todas as Eras, personagens históricos dizimaram nações, por riqueza e domínio. O bem sempre foi argumento, o mal sempre foi poder.
No entanto, à luz do saber, o bem sempre prevalece – a eterna disputa entre Satanás e Jó – e a humanidade avança. O conhecimento venceu todas as deformações humanas para que a Terra progredisse. Vivemos o tempo de um novo exemplo: cem anos depois de uma pandemia que dizimou 70 milhões de pessoas, surge um novo vírus tão letal, porém sem a possibilidade de matar na mesma proporção. A ciência reforçou a nossa proteção natural imunológica em um século e nos dá as vacinas em tempo inédito.
Não obstante as incontestabilidades, há quem seja contra, há quem odeie amar ou ame odiar. E se tem poder, põe em prática seus sentimentos. Desde 15 dias atrás, o ser humano permanece homo sapiens, sem mutação. Quando os 210 milhões estiverem vacinados, mesmo sob a perda de outros milhares dos nossos, a ignorância e o mal terão sido vencidos. As imagens de um homem sobre a motocicleta, alheio e insensível às dores do mundo passarão à história. E quando os 7,8 bilhões estiverem imunizados, a Terra voltará a ser o melhor lugar para viver.
*Ayrton Maciel é jornalista. Trabalhou no Dario de Pernambuco, Jornal do Commercio e nas rádios Jornal, Olinda e Tamandaré. Ganhador do Prêmio Esso Regional Nordeste de 1991.Escreve aos domingos.
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Foto destaque: manaus.am.gov.br