A vida é uma obra de arte

Por

Vera Lúcia Braga de Moura*

Em 11.02.2021

A vida não pode deixar de ser uma obra de arte se é uma vida humana, assim postula Zygmunt Bauman. Vamos deixando nossas marcas nos contornos da vida. Dessa maneira, vamos protagonizando a nossa existência. A nossa forma de enxergar a outra pessoa, a nossa perspectiva sobre o mundo vai agindo como pinceladas nas elaborações da vida. Interagindo há alguns dias com uma pessoa muito querida, lembro-me da interlocução sobre a importância dos laços afetivos atravessando a nossa existência e que esses provocam alegrias, tristezas, sofrimentos, desejos, felicidades. Foi dito que a nossa existência é para além de nós. Acho isso muito bonito. Nós continuamos na outra pessoa. Somos parte dela e ela também está em nós por meio do que estabelecemos nas nossas vivências.

Nessa direção, entendemos que a existência humana é pura alteridade. Sem o outro/a não temos como reconhecer a nossa existência. As nossas experiências estão pautadas nas aprendizagens com as outras pessoas. É interessante pensar que em certos momentos nós conseguimos traçar alguns elementos harmônicos em nossas experiências de vida, e em outros esse traçado sai meio torto, obscuro, nebuloso, como afirma tão bem o filósofo francês Paul Ricouer quando diz que a vida é nebulosa, mas cheia de estrelas e geralmente nos sentimos atraídas por elas, nos causam encantamentos. E, às vezes, seguimos atraídos pelo brilho de uma estrela, ou muitas delas. Em outros momentos, as estrelas iluminam o nosso caminhar. Vêm os questionamentos: o que faz a gente se encantar por determinada estrela? Por que achamos que algumas estrelas são melhores guias em detrimento de uma multiplicidade delas?

Esses são alguns dos dilemas da existência humana. Não sabemos os porquês de tudo, até porque a vida, como uma obra de arte, é um projeto inconcluso, inacabado. O inesperado, o acontecimento, as surpresas, os desafios, as adversidades, os sentimentos, o lúdico, as alegrias, os encantos, os desencontros, os encontros, fazem parte desse devir. Então, a visão mais ampla sobre a arte da vida ou a vida como uma obra de arte em permanente elaboração, inacabada, pode nos possibilitar enxergar outras perspectivas menos nebulosas, talvez, e mais assertivas.

Parece que nesse fazer artístico o dissonante também contribui para ajustar os acordes da sinfonia da vida.

Michel Foucault, brilhantemente refletindo sobre a vida, pondera que se uma lâmpada, uma casa pode ser considerada uma obra de arte, por que não a vida humana? Nessa tessitura da vida como uma arte, penso nos diversos contextos humanos e a sinergia para acontecer os encontros e as contendas nos desencontros. Interessante que tem gente de quem gostamos, admiramos, respeitamos, nutrimos afetos e nem sempre as pinceladas da vida são harmônicas. Parece que nesse fazer artístico o dissonante também contribui para ajustar os acordes da sinfonia da vida. Em muitos momentos quebra a corda, ajeita, emenda, troca a corda e segue o eterno elaborar, reelaborar, aprender, reaprender, ressignificar os passos da caminhada.

Não deve existir fixidez. A flexibilidade é que vai dando o tom mais harmônico na vida como obra de arte. Encontrar o caminho do meio é o desafio constante. “Em algum lugar além do certo ou errado, existe um jardim, encontrarei você lá”, como diz o poeta  Rumi. A gente racionaliza muito. Se levássemos a vida com mais leveza, mais amplitude, com mais generosidade e gentileza na relação com o outro/a, talvez a vida tivesse um contorno mais bonito, mais harmônico, mais saudável e encantador. Muitas dores e sofrimentos emocionais poderiam ser evitados.

Bauman pondera o pressuposto empírico que “se você for bom com os outros, os outros serão bons com você”.

A vida como elaboração e eterno devir busca de alguma forma provocar os encontros humanos. Como mostra, ainda, Zygmunt  Bauman, na sua obra “A Arte da Vida”, os filósofos da ética fazem o possível para estabelecer uma ponte entre as duas margens do rio da vida: o autointeresse e a preocupação com o outro. Os filósofos buscaram argumentos para contemporizar esse hiato e solucionar essa controvérsia. Trouxeram muitas abordagens, entre elas que outros lhe pagarão a gentileza com a mesma moeda; que cuidar das outras pessoas e ser bom para elas é algo valioso e indispensável, pois se refere aos cuidados consigo mesmo. Bauman pondera o pressuposto empírico que “se você for bom com os outros, os outros serão bons com você”.

Diante dos esforços, a evidência empírica não se concretizara ou permanecia ambígua, como preconiza o referido filósofo. O pressuposto não se enquadrava muito bem com as experiências de um número grande de pessoas. Com isso, descobriam e relatavam que com muita “frequência eram as pessoas egoístas, insensíveis e cínicas que colecionavam todos os prêmios, enquanto as pessoas gentis, cheias de compaixão e de coração grande, prontas a sacrificar sua própria paz e conforto pelo bem dos outros, se viam muitas vezes tapeadas, desdenhadas, lastimadas, ou mesmo ridicularizadas pela credulidade e pela confiança imerecida (já que não mútua) ”.

É comum escutarmos as pessoas dizerem que quem sai lucrando é quem cuida de si mesmo, enquanto os que se preocupam com o bem-estar dos outros acabam se prejudicando de alguma forma. Mais uma vez Bauman faz suas ponderações contrárias a essas argumentações. Por exemplo: “se você decide ser gentil com os outros porque espera receber uma recompensa pela gentileza, se a recompensa esperada é o motivo de suas boas ações, e se ser gentil e bom com os outros é resultado dos cálculos de seus ganhos e perdas prováveis, sua forma de agir é realmente uma manifestação de sua postura moral ou apenas mais um caso de comportamento egoísta mercenário?” Continua o filósofo: “Será que a bondade para com os outros é um produto de decisão racional? A bondade pode ser ensinada?” Buaman diz que argumentos a favor e contra a essas perguntas têm sido apresentados, mas até agora nenhum deles é dono de uma autoridade inconteste. A discussão continua…

Como sugeriu o filósofo Michel Foucault, a identidade não é dada. Nossas identidades são criadas, assim como são criadas as obras de arte. Nessa elaboração, nos cabe o questionamento: Quem sou eu? Qual é o meu lugar no mundo? Por que estou aqui? Somos seres de relações. Qual o meu papel no mundo das relações? É só brigar? Apontar o dedo repetindo a célebre frase do filósofo francês, Sartre, “o inferno são os outros”? Resta-nos indagar: quem são esses outros?

Nessa teia humana é interessante repensarmos o comportamento bondoso. Sermos uma pessoa boa, nos importarmos com o bem-estar da outra pessoa, nos interessarmos pelo seu estado de saúde orgânica, emocional, não nos faz uma pessoa melhor no mundo? Não com esse crivo negociável, toma lá dá cá, mas compreendermos a interdependência, que a alteridade nos mostra que existimos na relação com o/a outro/a. Nós, para existirmos, dependemos de uma complexidade de fatores. E, enquanto seres humanos, devemos ter a responsabilidade emocional, o respeito de uns para com os outros.

Quantas vezes desejamos segurar na mão da outra pessoa para ajudá-la na escalada da vida e não é possível?

Afinal, estamos aqui de estada na vida terrena para quê? Quais os rastros que nós humanos vamos deixando nas nossas relações, na sociedade, na natureza, na Terra? Quantas vezes nos sentimos impotentes diante das agruras da vida? Quantas vezes desejamos segurar na mão da outra pessoa para ajudá-la na escalada da vida e não é possível? A impotência causa sofrimento. Escutei muito o adágio popular que diz: “querer é poder’. Discordo totalmente. Quantos quereres são frustrados, desfeitos, pelas impossibilidades e barreiras que a vida nos impõe?

Penso que temos muito o que fazer. Nos curar e contribuir com a cura da humanidade. Olhar com compaixão para si e para o outro. Perguntar a quem amamos, as pessoas dos nossos convívios, familiares, do nosso entorno, até um transeunte: Como vai você? Com o sentir do coração. Mostrar que nós nos importamos uns com os outros. Queremos o bem-estar do outro, porque nos toca quando essa pessoa sofre. Porque, como ressaltamos anteriormente, nós somos para além de nós e somos parte do outro, por isso que o sofrer e o alegrar têm reflexos na gente. Os laços humanos vão atravessar a nossa existência de uma forma ou de outra.

Na seara da vida, pensando como uma obra de arte, inconclusos que somos, me entrego à poesia de Milton Nascimento com o fragmento da canção “Um Girassol da Cor de Seu Cabelo.” Se eu cantar, não chore não, é só poesia/Eu só preciso ter você por mais um dia/ Ainda gosto de dançar, bom dia, como vai você? Quem sabe a poesia nos ensine a encontrarmos o caminho do meio, do encontro humano?

*Vera Lúcia Braga de Moura é professora e doutora em História. Gerente de Políticas Educacionais de Educação Inclusiva, Direitos Humanos e Cidadania. SEDE/Secretaria de Educação e Esportes do Estado de Pernambuco. Escreve às quintas-feiras.

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