A dança da sabedoria
Vera Lúcia Braga de Moura*
Em 25.02.2021
Precisamos abrir espaços nos nossos corações para entendermos as nossas relações. Somos seres relacionais. Contudo, nos relacionamos de maneiras diversas. As conexões que estabelecemos com as outras pessoas vão configurando as bases das nossas relações. Existem conexões mais fortes do que outras, bem como gostares, sintonias mais ritmadas que nos possibilitam dançar a vida com mais sabedoria e mais alegria.
A vida é uma espécie de dança. É uma diversidade de ritmos, sonantes e dissonantes. Os passos, muitas vezes, machucam, ferem, tropeçam, acertam, sintonizam, erram e seguem no bailar da elaboração constante da impermanência. Nada está pronto, tudo é construção. A vida é um eterno devir. Nessa melodia confusa, muitas vezes, na dança da vida, precisamos ter sabedoria, e uma das premissas orientadoras reporta-se a nos apresentarmos a nós mesmos, isto é, nos conhecermos, é o que nos ensina a arquiteta e praticante da arte contemplativa Márcia Baja. É preciso desenvolvermos abertura para a vida. Olharmos as nossas relações com amplitude, com abertura. Não existem receitas prontas. Não adianta nos relacionarmos levando receitas, modos de agir de um momento para outro. Pode não dar certo. Estamos, dessa forma, limitando as nossas experiências. O fazer humano nas relações tem suas mágicas e encantos, e essas nuances precisam ser consideradas.
Muitas vezes nos encontramos nos nossos convívios com pessoas que nos trazem alegrias, bem-estar e tendemos a retê-las junto a nós. Mas, parece que esse seja um grande e nebuloso equívoco, pois no desejo de tê-la ao nosso lado, ansiamos por controlá-la, e assim praticamos violência com a pessoa e conosco mesmo. O outro é importante, mas precisamos de espaço, liberdade, para que a dança da vida, com sabedoria, aconteça. Nós somos seres muito autocentrados e desejosos de que nossas necessidades sejam totalmente satisfeitas. Por isso que a amplitude do olhar é importante e necessária, a fim de que não limitemos as nossas relações ao preestabelecido, mas que haja um espaço inusitado, do não acontecido, alegre, encantador, lúdico em permanente criação. Para isso precisamos dar asas ao nosso coração, acreditar nas (in) certezas da vida, na potencialidade da arte de amar.
Enxergar a vida como uma dança faz toda a diferença. Cada dança tem seu movimento singular, seu passo e descompasso, suas especificidades, seus (des) encantos. A dança, por mais desengonçada que seja, tem sua magia, sua graça. Essa leveza de entender a vida como uma dança nos possibilita aproveitar melhor todas as experiências que chegam para nós. Entender aquilo que podemos mudar e o que não está sob nosso controle. Assim a vida poderá ser vista de forma mais ampla, com seus sabores e dissabores.
Épicteto foi escravo na Roma Antiga e, por seu brilhantismo intelectual, foi liberto. Além de ser representante da filosofia estoica, foi mestre de muitas personalidades. Entre elas, Marco Aurélio, imperador romano. Diz Epicteto em sua obra A Arte de Viver: “Aprenda com as leis da natureza a aceitar os acontecimentos, até mesmo a morte, com inteligência”. É muito sagaz e assertivo o pensamento do filósofo, pois, diante da finitude humana, o mais sábio é não se contrapor à inexorável condição humana diante da morte. E buscar com sabedoria aproveitar da melhor forma possível nossa vivência diante do tempo finito que dispomos. Nós, em grande parte do tempo, deixamos de dizer às pessoas que a amamos, de que elas são importantes para nós, que elas nos alegram e nos nutrem de bem-estar. Ao invés disso, muitas vezes primamos por proferir desagravos, nos encolhemos, nos limitamos ou ficamos no não dito e no não vivido, e vamos perdendo as oportunidades de embalarmos na dança da sabedoria que nos dota de vivacidade e alegria de viver.
Epicteto fala ainda sobre os apelos da alma. É nesse ponto que precisamos fazer reflexões sobre nós mesmos. Diz o filósofo que não devemos parar nesse lugar, mas ir em frente, decididos a curar a nossa própria vida. Essa proposição do referido filósofo é muito oportuna, pois mostra que precisamos nos curar antes de qualquer coisa. Para desenvolvermos relações saudáveis com as pessoas e o mundo precisamos todos(as) nós de cura.
Essa possibilidade de cura pode vir de várias maneiras, como por exemplo, considerando nossas fragilidades e vulnerabilidades diante da vida. Olharmos para nós e para os outros/as de uma forma mais humilde, mais serena, com mais amorosidade e alteridade. Essa condição suaviza o embalar da nossa dança. Enxergarmos a nossa interdependência. Não somos uma ilha, dizem sabiamente alguns escritos. Precisamos nos apoiar uns nos outros. Essa é nossa fortaleza e a condição humana para uma existência saudável. Nos observarmos, pausarmos e compreendermos a importância da outra pessoa em nossas vidas, no nosso caminhar. Nesse embalo rítmico da dança da vida, precisamos considerar o direito da fala e da escuta. O poder do diálogo, a roda de conversa, a relação dialógica, o direito de exprimir o nosso sentir. Isso é muito curador.
No prefácio do livro de Zygmunt Bauman O Retorno do Pêndulo, escrito pelo psicanalista Gustavo Dessal, que também compõe essa obra, ele traz uma importante mensagem sobre a ideia do que poderíamos compreender como amor. Diz assim: ”A coragem do amor se mede por sua virtude em reconhecer aquilo que no outro nos é apresentado sob a forma da diferença – e mesmo assim ser capaz de acolher essa alteridade. Um amor despojado dos invólucros narcisistas exige disposição para a contingência do encontro e renúncia à fantasia da completude.” O psicanalista ressalta que a obra de Bauman é tributária do filósofo Emmanuel Levinas, com seu conceito de ética da alteridade, como reconhecimento das singularidades dos outros, sem julgamentos. A responsabilidade afetiva é uma pratica da alteridade e da dimensão do amor.
A liquidez da sociedade moderna trazida por Bauman em suas obras mostra com muita maestria a indiferença, o vazio existencial, os laços fluídicos, efêmeros e descomprometidos das relações humanas que desumanizam e adoecem todos nós. Esse estado situacional não deve ser naturalizado. Os seres humanos necessitam de um olhar com abertura para enxergar as humanidades que permeiam a nossa existência. Valorizar os encontros humanos, pois esses dotam a vida de sentidos. A vida humana não deve ser desperdiçada. Cada experiência que inclui a outra pessoa é uma oportunidade de ressignificar e reelaborar as nossas humanidades dotando-lhe de encantamento pela vida. A essência da vida está nos encontros humanos, na possibilidade de nos reconhecermos e nos construirmos com o outro e no outro. A existência humana é para além de nós, ela se configura e se constrói na relação com o outro/a.
Como nos colocamos nas nossas relações? Trazemos mais confusões, exclusões, ou afetividades? Compreensões, acolhimentos? Potencializamos a dança da sabedoria da vida com nossa visão ampla, de abertura ou nos fechamos em nossos mundos interiores? Visualizamos o outro para além de nós ou continuamos em nosso autocentramento, buscando apenas atender aos nossos desejos e necessidades narcisistas? Diante da nossa vida de multitarefas, de seres ocupados demais, será se não há lugar para uma pausa? Será se não dar para simplificarmos nossas vidas, irmos retirando um amontoado de coisas e encontrando mais sutileza e beleza no passo e nos descompassos da dança da vida?
Aconchego-me na poesia do poeta Rumi que encanta a alma: ”Vem, te direi em segredo/Aonde leva a dança. Vê como as partículas do ar/E os grãos de areia do deserto/Giram desnorteados. Cada átomo/Feliz ou miserável, Gira apaixonado /Em torno do sol. Ninguém fala para si mesmo em voz alta. Já que todos somos um, falemos desse outro modo. Os pés e as mãos conhecem os desejos da alma/ Fechemos pois a boca e conversemos através da alma/Só a alma conhece o destino de tudo, passo a passo. Vem, se te interessa, posso mostrar-te.” E, assim, sigamos, com os olhos do coração e da sabedoria, na dança da vida.
*Vera Lúcia Braga de Moura é professora e doutora em História. Gerente de Políticas Educacionais de Educação Inclusiva, Direitos Humanos e Cidadania. SEDE/Secretaria de Educação e Esportes do Estado de Pernambuco. Escreve às quintas-feiras.
Foto destaque: Internet
Inspirador.Nos faz refletir sobre várias temáticas. Em especial buscar a simplicidade da vida . Da beleza infinita que é a dança da Vida,mas, é preciso querer aprender,sentir,degustar e amar cada passo,ritmo e melodia.
Obrigada Monica.
Verdade, tudo parte das nossas escolhas .
Abraços!
Na dança da vida, não temos escolhas, ora tocamos um instrumento, ora participamos da valsa, ora nos deleitamos com as lembranças de uma música, ora somos até convocados a compor uma música!!! assim, vamos seguindo nessa aventura imprevisível, fascinante e desafiadora de viver com sabedoria.
Obrigada Lucinha!
Muito bom seus comentários!!
Então, digamos que em algumas situações tenhamos escolhas em outras não, contudo sempre podemos escolher o melhor passo para nós na dança da vida! Bjs grande!
A realidade concreta sempre tende a nos afastar dessa esfera humanizada, porém como você muito bem acentua: é preciso insistir no campo da alteridade!
Verdade, Maelda ,querida!
A alteridade dota de sentido a nossa existência! Abraços!!
Vera,
Texto animador e inspirador para continuar o dançar e o sonhar. E lutar para viver.
Obrigada Fernando pela leitura e comentário.
Abraços.