O fascínio (in) consciente pela morte… dos outros
Enildo Luiz Gouveia*
Em 04.03.2021
Apesar de vivermos na era da informação, faltam-nos capacidade e vontade de transformar a informação em conhecimento e o conhecimento em rebeldia.
Há um ano começamos um processo de distanciamento sanitário para tentar frear o contágio pelo novo coronavírus. Desde então, manifestações contrárias às medidas de fechamento parcial do comércio, escolas, entre outras atividades, não param de acontecer. O protagonista principal de tais manifestações poderia ser uma pessoa inculta, desinformada e sem expressão. Todavia, no país onde o improvável é previsível, este papel está reservado ao presidente da nação e o rebanho que o segue. Há, por parte destes, uma constante afronta às regras de distanciamento e ao uso de máscaras, sem que sejam punidos exemplarmente.
Apesar de vivermos na era da informação, faltam-nos capacidade e vontade de transformar a informação em conhecimento e o conhecimento em rebeldia. Ao longo da história, diante das epidemias que se abateram sobre a humanidade, o distanciamento sanitário sempre foi adotado como forma de diminuir o número de infecções e óbitos. Mas, em nome do Mercado/Economia, a mão invisível que tudo controla, tem-se contestado publicamente e sem base científica alguma, o método historicamente comprovado.
Não é que não se tenha medo da pandemia. As notícias recentes mostram parte dos negacionistas numa corrida louca pelas vacinas. Chegou-se a cogitar a compra por parte das clínicas particulares de lotes das vacinas para que, os que pudessem pagar, fossem vacinados rapidamente sem precisar de agendamento ou filas. Assim, vivemos uma espécie de seleção natural aplicada ao meio social, onde o mais forte (leia-se, quem tem mais recursos) sobrevive.
Chegamos à triste constatação de que a morte dos outros não incomoda a este grupo social de privilegiados. E se estes outros forem desconhecidos, importam menos ainda. Se os outros morrem pela falta de leitos, respiradores, ambulâncias… não os importa pois, apesar do desrespeito às regras da pandemia, pode-se pagar tratamento médico particular nos melhores hospitais do país e do mundo. Não é a toa que parte do empresariado continua fielmente contrário às limitações impostas, não por falta de evidências, mas, porque para estes, e para muitos, infelizmente, a economia vem em primeiro lugar.
Espero que a chegada da vacina não provoque ainda mais desprezo pelas medidas até agora adotadas. Após um ano de pandemia e de restrições e perdas que superam a casa das 250 mil vidas, continuamos a assistir ao fascínio pelas mortes dos outros, desde que estes outros, não sejam uns dos nossos.
*Enildo Luiz Gouveia é professor do IFPE e membro da Academia Cabense de Letras (ACL).
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