A ‘legítima defesa da honra’ é página que está sendo virada

Por

Cláudio Carraly*

Em 04.03.2021

O artigo 240 do Código Penal (cometer adultério) hoje já revogado, preconizava pena de detenção de 15 (quinze) dias a 6 (seis) meses para essa prática. Essa disposição de criminalizar questões e práticas morais individuais abriu de forma permissiva uma estratégia nefasta utilizada por décadas por parte de defesas de réus de crimes contra a mulher.

A traição se encontra inserida no contexto das relações pessoais, sendo que ambos os sexos podem praticar o ato com maior ou menor repercussão na vida dos casais.  A analise e intromissão por parte do Estado por quanto de um possível dano moral, além de inadequado é totalmente despropositado, já não havendo que se falar em um direito individual de agir com violência contra o outro parceiro sob o argumento de possível dano à “honra pessoal”, mesmo que se haja comprovado o adultério.

Com base nesse entendimento, o ministro Dias Toffoli, do Supremo Tribunal Federal (STF), decidiu conceder parcialmente medida cautelar para firmar o entendimento de que a tese da legitima defesa da honra é inconstitucional. A tese ganhou fama por meio da defesa do empresário Doca Street, que assassinou em 1976 sua esposa, a socialite Ângela Diniz, com quatro tiros no rosto, durante uma discussão do casal em Búzios (RJ). Os advogados usaram o argumento de “legitima defesa da honra” para justificar o crime do feminicida.

A decisão foi provocada pelo Partido Democrático Trabalhista (PDT), que em seu pedido inicial sustentava que a matéria gerava insegurança jurídica, já que alguns tribunais ainda possuíam entendimentos diversos sobre o caso, vários desses processos sendo encerrados com absolvição dos réus processados pela prática de feminicídio, sempre com fundamento na suposta tese da legítima defesa da honra.

Ao analisar a matéria, o ministro Toffoli em sua decisão, afirmou:

“Penso ser inaceitável, diante do sublime direito à vida e à dignidade da pessoa humana, que o acusado de feminicídio seja absolvido (…) com base na esdrúxula tese da ‘legítima defesa da honra’. Dessa forma, caso a defesa lance mão, direta ou indiretamente, da tese inconstitucional de legítima defesa da honra (ou qualquer argumento que induza à tese), seja na fase pré-processual, processual ou no julgamento perante o tribunal do júri, caracterizada estará a nulidade da prova, do ato processual ou até mesmo dos debates por ocasião da sessão do júri”.

Ainda de forma incisiva o ministro afirmou que “Aquele que pratica feminicídio ou usa de violência, com a justificativa de reprimir um adultério, não está a se defender, mas a atacar uma mulher de forma desproporcional, covarde e criminosa”. Por fim, Toffoli lembrou que é dever do Estado “criar mecanismos para coibir o feminicídio e a violência doméstica”.

Nosso país, infelizmente é um dos campeões mundiais da violência contra a mulher. Nos últimos anos o Brasil vem, de forma urgente, criando e fortalecendo um marco legal que trate com rigidez o crime contra a mulher com a característica de existir pelo fato de a vítima ser mulher. Nossa cultura ainda comporta discriminação da mulher por meio da prática, expressa ou velada, da misoginia e do patriarcalismo. Isso causa a objetificação da mulher, o que resulta, em casos de violência culminado no feminicídio.

A imensa quantidade de crimes cometidos contra as mulheres e os altos índices de feminicídio demonstram o quanto são necessárias políticas públicas que promovam a igualdade de gênero por meio de forma transversal em todas as áreas de conhecimento e das políticas públicas.

O fato fundamental é que embora tenhamos avançado, ainda há muito a ser feito quanto a igualdade de gênero no nosso país. Nossos parlamentos, o judiciário, o executivo e as empresas privadas não comportam em suas lideranças o número proporcional de mulheres que compõem a sociedade. Porém, ao menos no caso da vergonhosa tese da legitima defesa da honra essa pagina está sendo virada. Vamos em busca do próximo avanço.

*Cláudio Carraly é advogado e ex-secretário executivo estadual de Direitos Humanos.

Foto destaque: catracalivre.com.br