A escola da vida

Por

Vera Lúcia Braga de Moura*

Em 11.03.2021

“Gosto de ser gente porque a História em que me faço com os outros e de cuja feitura tomo parte é um tempo de possibilidades e não de determinismo. Daí que insista tanto na problematização do futuro e recuse a sua inexorabilidade.”

Paulo Freire

Somos eternos aprendizes. Aceitar essa condição humana nos possibilita uma visão mais ampla da vida. Aprender, reaprender, ressignificar e reelaborar. Aprender, ensinar, desconstruir e construir. Talvez, se enxergássemos a vida de forma mais flexível e não linear, entendêssemos melhor o seu movimento.

A escola é um lugar de múltiplas aprendizagens, um ambiente que deve acolher quem chega e onde os pares devem estabelecer uma convivência respeitosa, ética, autorresponsável, generosa e afetuosa. A escola é lugar de encontros e afetividades. A vida como escola deveria ser pautada em afeto e acolhimento a quem chega, a quem passa, a quem fica e a quem vai.

Muitas vezes nos sentimos acuados com as difíceis convivências humanas. Como nos relacionarmos de forma que não afetemos negativamente a outra pessoa, e também não nos sintamos feridos emocionalmente? Um grande desafio é esse, vivermos harmonicamente em nossas relações. Em interação com uma pessoa amiga ela dizia que “quando não estamos em sintonia conosco, desandamos”. Concordo. Achei muito assertiva essa proposição. Parece que quando algo não está bem conosco tendemos a nos desestabilizarmos, desandarmos, como disse a pessoa amiga.

É possível que nesse movimento dissonante causemos algumas confusões nas nossas convivências. Penso nesse processo relacional, na ética da alteridade, na generosidade, na empatia e no afeto. O autocentramento é tão grande que não conseguimos enxergar quase nunca a dor da outra pessoa, a sua necessidade. A tônica é que não fomos compreendidos(as), escutados(as) ou não vistos(as) como gostaríamos.

As nossas individualidades e direitos de ser/estar feliz muitas vezes não alcançam a dimensão e nem o mundo do outro(a), nas suas singularidades. Daí cometermos equívocos , distorções, falhas e sofrimentos. Uma das dificuldades, a meu ver, no mundo das relações e na seara da vida, é que cada um de nós tende a olhar, focar e enxergar as suas necessidades apenas e comumente nos detemos nelas, estacionamos, fazemos tudo para garanti-las e não treinamos e nem aprendemos a desenvolver a empatia, e enxergar também, de forma simultânea as necessidades das outras pessoas.

Nas relações que estabelecemos na escola da vida geralmente caminhamos em pares, mas de forma muito fragmentada. Os convívios são muito compartimentados, não nos vemos como um todo, mas de forma bi, tri, multi. Assim, geramos muitas incompreensões e distorções sobre os sentidos e importâncias das relações humanas na vida de todos (as) nós. Geralmente, criam-se expectativas sobre o comportamento uns dos outros. E quando uma pessoa age de forma diferente como presumíamos, comumente, a confusão está estabelecida. Ficamos entristecidos (as), irritados (as), desencantados (as), quando não cancelamos a pessoa do nosso convívio.

Problematizando a questão, penso que seria interessante ponderarmos. Somos aprendizes, seres inconclusos, falhos (as), ou seres conclusos, prontos, perfeitos na seara da vida? É importante pensarmos que quando ofendemos a outra pessoa, insultamos, agredimos, somos violentos (as) porque ela não agiu como desejaríamos, não nos dá o direito de machucar e agredir essa pessoa. Dessa forma, nos colocamos numa relação não horizontal, mas numa relação hierárquica, assimétrica, em que uns acham que são melhores e têm mais direitos que outros. Escutei em algum momento uma pessoa dizer que para respeitar alguém precisaria que a outra “se desse ao respeito”. Discordo totalmente. Esse é um argumento equivocado, distorcido e violento. É o discurso do agressor. Merece uma reflexão. O que é uma pessoa se dar ao respeito? Eu trago isso para a reflexão porque muitas vezes reproduzimos uma mentalidade violenta sem nos darmos conta do que estamos expressando. Com isso não quero dizer que precisamos concordar com a pessoa, mas que a respeitamos mesmo com nossos posicionamentos diferentes.

O respeito às pessoas deve ser de forma incondicional. Nós respeitamos pela nossa condição humana. Devemos acolher, respeitar, buscar compreender as pessoas nas suas fragilidades e dificuldades.  O respeito a outra pessoa não deve ter condições, ou seja, não devemos atrelar o respeito a determinada pessoa só se ela agir da forma que acreditamos ser certa. As nossas crenças não devem ser regras para ninguém. Quando desrespeitamos uma pessoa, proferirmos palavras agressivas, rudes, estamos sendo violentos(as). Precisamos aprender a acolher e enxergar a outra pessoa mesmo que ela não atenda as nossas expectativas. É preciso sermos generosos e compassivos se desejamos uma sociedade inclusiva, amorosa e harmoniosa.

A frustração e decepção que muitas vezes sentimos em relação as nossas convivências com as pessoas nos mostram o quanto somos individualistas e temos uma mente egoísta. Desse modo, seria bom considerarmos que determinada pessoa pode ter feito tudo o que era possível naquele momento, embora o melhor dela possa não ser o nosso melhor. Nós, com nossas mentes fragmentadas e individualistas, tendemos a não enxergar a outra pessoa e não compreender que ela pode também estar em sofrimento, por isso pode ferir. Nessa perspectiva, entendemos que por mais que nos decepcionemos com o(a) outro (a) não justifica agirmos de forma agressiva. As violências são inegociáveis. É importante buscarmos cada vez mais entendermos as nossas interdependências com as outras pessoas. Não tem como a gente ferir e não se machucar também. Não somos uma ilha. Não temos como caminhar sozinhos (as) na escola da vida. Nós estamos conectados com a natureza, com as outras pessoas e com os outros seres vivos. Só essa compreensão e generosidade que nos farão desenvolver aprendizagens significativas na escola da vida.

Tem uma pergunta que o líder indígena brasileiro Ailton Krenak faz no livro “Ideias para adiar o fim do mundo”: Somos mesmo uma humanidade? Quais são as relações que nos constituem? Quem são os nós nas nossas relações? A humanidade como um todo? Uns poucos amigos? Familiares? Colegas? Amores? A natureza? Os outros seres vivos? Quem são os nós das nossas relações?

Como enxergamos o momento presente? O que nos diz essa pandemia? É certo que a Covid-19 nos mostra bem de perto o quanto somos vulneráveis e frágeis. Mostra-nos também as incertezas da vida e a nossa finitude com mais assertividade. Como podemos lidar melhor com o nosso tempo finito na terra?

Encerro com Paulo Freire, em Pedagogia da Autonomia: “Gosto de ser gente porque a História em que me faço com os outros e de cuja feitura tomo parte é um tempo de possibilidades e não de determinismo. Daí que insista tanto na problematização do futuro e recuse a sua inexorabilidade.” Que a escola da vida nos ensine o quanto é preciosa a experiência humana.

*Vera Lúcia Braga de Moura é professora e doutora em História. Gerente de Políticas Educacionais de Educação Inclusiva, Direitos Humanos e Cidadania. SEDE/Secretaria de Educação e Esportes do Estado de Pernambuco. Escreve às quintas-feiras.

Foto destaque: Ipt.wikipedia.org