O poder é civil, a obediência é militar

Por

Ayrton Maciel*

Em 05.04.2021

O poder é do povo. Mesmo que ditaduras durem mil anos, quando caem, o custo – não raro – é cobrado à força, a mesma que foi instrumento do poder tombado, e associadamente na forma dura da lei. Mas, será a história a pena perpétua. O poder é civil, emana do povo. Os militares são uma parte. Assim, por esse preceito constitucional das democracias, a redemocratização do Brasil pós-64, aos olhos atuais, cometeu o erro de condicionar a si mesmo o perdão para conciliar o Estado bárbaro e os seus opositores. A Anistia de 1979 errou ao incluir militares e agentes que cometeram crimes contra a humanidade.

Nos países vizinhos – Argentina, Chile, Uruguai -, ditadores e cúmplices foram punidos, e desde então não se escutam ameaças à democracia. No Brasil, onde se ressalta uma hipotética índole conciliadora, a partir da eleição de Tancredo Neves e seu vice José Sarney (1985), quer seja pelo vaivém retórico do fantasma do “comunismo” – argumento desconectado da realidade -, quer seja por queixa de salários, generais e patentes inferiores da ativa e da reserva tentaram interferir na normalidade democrática: ameaças às instituições, causar medo, usar do oportunismo de quem tem o poder exclusivo das armas.

Vozes ameaçadoras, mas que fracassaram. Entretanto, o perdão de 1979 é responsável pelas presunçosas manifestações militares, nestes 35 anos, e pelo Brasil ter hoje um presidente da República, o ex-capitão Jair Bolsonaro, a impunemente repetir intimidações ao Congresso, ao STF e aos governadores federados, cultivando um alucinado desejo de ditador. Ou seja, quer aplicar um “autogolpe” com o apoio do que ele imagina ser “o seu Exército”. Os trágicos números do desgoverno no enfrentamento da pandemia do Covid-19 não o incomodam. O que o move é o delírio, o ódio político, o desprezo humano.

Há algo de patológico, um mundo indiferente e frio. Em mais de dois anos, o programa presidencial mais focado é o de conspirar contra as instituições, usando as Forças Armadas para ameaçar. Na semana recém-terminada, a paciência dos oficiais-comandantes das três forças -, ao menos, os que não caíram na dialética ilógica de Bolsonaro -, chegou ao limite da tolerância: “o Exército não é de Bolsonaro”, deixaram claro. A crise com os generais, brigadeiros e almirantes – devido à demissão do ministro da Defesa, general Fernando Azevedo, e dos três comandantes-gerais – acabou mal para o presidente.

De cooptador a enquadrado. Passou da tentativa de enquadrar as FFAA aos seus ditames autoritários a um presidente recomendado a respeitar a Constituição e as instituições. O delírio autoritário o impediu de prever a reação que o enquadrou. O episódio, por outro lado, reacendeu a retórica do “golpe à vista”. Os bolsonaristas aproveitaram as redes sociais para disparar versões e fakes, como que “finalmente” estivesse em marcha o autogolpe de Bolsonaro, e que os opositores se preparassem para acertar as contas. Assustados, antibolsonaristas se perguntavam: “o que está por trás? Um golpe?”.

Que Bolsonaro gostaria de ter generais vassalos, que colocassem suas Forças a serviço de seu projeto de golpe na democracia, não resta dúvida. O presidente não é de pensar em consequências, o que o torna um caricato ditador de republiqueta. Porém, épocas e circunstâncias não se repetem. Portanto, prós e contras nunca têm a mesma influência. Em agosto de 2020, em crise com o STF, o presidente incentivou extremistas a irem às ruas pedir o fechamento das instituições, uma “ditadura com Bolsonaro no comando”. A postura destemida dos ministros da Corte, de líderes congressistas e da imprensa mostrou ao presidente que o mundo não está em 64.

Recorro a um trecho de artigo publicado naquele mês, agora atualizado, que questiona o ambiente de então para um golpe. Nada mudou. Bolsonaro quer, seus seguidores exaltam, mas não há condições nem circunstâncias, internas e externas, que favoreçam a uma aventura de consequências extremas. Bolsonaro e seus militares e políticos apoiadores correriam um grande risco de derrota num ataque à Constituição e à democracia. Passados 57 anos desde 64, Bolsonaro estaria metido numa aventura sem volta, mas inevitavelmente interrompida e punida pelas circunstâncias e condições de agora. Quais?

1) O que faria com o STJ e o MPF, depois de interditar o STF? No Supremo, substituiria os 11 por outros 11 sob quais critérios? Investigações e processos que envolvem seus familiares e amigos prosseguiriam ou seriam arquivados? E os que envolvem petistas, esquerdistas e tucanos teriam prioridade? Os TJs e MPs estaduais sofreriam intervenções?

2) Resistindo os deputados e senadores, o Congresso seria fechado? Os mandatos seriam cassados e os partidos políticos extintos? Políticos de oposição seriam presos e degredados? Os governadores seriam depostos? Ou só os de oposição?

3) As Universidades sofreriam intervenção, com reitores , professores, servidores e estudantes cassados? Os movimentos estudantil, social e sindical seriam proibidos? As sedes seriam fechadas e seus lideres seriam presos? A comunidade científica seria isolada? O combate à pandemia ocorreria sem restrições à vida social e econômica?

4) A liberdade de imprensa seria cerceada? Os jornais seriam empastelados? As TVs e rádios receberiam censores? As redes sociais sofreriam bloqueios, exceto as redes de ódio e de fake news aliadas? Os protestos de rua seriam reprimidos por militares e policiais com o excludente de ilicitude?

5) Os organismos internacionais de direitos humanos, a ONU, a OEA, ficariam passivos? Os países vizinhos seriam convencidos de que o golpe foi dado para salvar a democracia, reorganizar o Judiciário e o Legislativo? Os líderes mundiais, os fóruns internacionais, a ONU e a OEA acatariam as justificativas?

6) No continente, o entorno democrático fecharia as fronteiras, repudiando o golpe e reduzindo o comércio, que seria igualmente afetado com os principais parceiros, China e EUA. Sem Donald Trump na Casa Branca, o “ditador” Bolsonaro enfrentaria o poder e o desprezo do antinegacionista Joe Biden. Sem o apoio da direita econômica e política liberal, sob repulsa da comunidade internacional e numa economia em queda, por quanto tempo o respaldo do “seu Exército” seria mantido?

7) Num momento inicial, grupos fardados que frequentemente marcham nas manifestações bolsonaristas, estariam legitimados a sair armados às ruas na caça a opositores? Perseguições, sequestros, torturas e desaparecimentos seriam considerados como parte do “processo de higienização” cultural e política? Bolsonaro delira e se ilude.

O presidente e os generais alinhados ideologicamente que tiver não têm condições de dar um golpe. Têm desejo, mas as circunstâncias e condições os impedem, não ficariam impunes como em 1979. Em meio a uma pandemia, o Brasil conta 330 mil mortes até o momento, grande parte em consequência da passividade e da omissão do governo federal que levaram ao descontrole da doença. Apesar de tudo, inclusive da economia, não houve saques, depredações, quebra-quebras. Sinal de que a população espera a solução pelas vacinas, mesmo tardia, e paz para a recuperação da economia e a retomada da vida social.

Ayrton Maciel é jornalista. Trabalhou no Dario de Pernambuco, Jornal do Commercio e nas rádios Jornal, Olinda e Tamandaré. Ganhador do Prêmio Esso Regional Nordeste de 1991.
Os textos aqui publicados não refletem necessariamente a opinião do blog Falou e Disse.
Foto destaque: brasildefato.com.br