O Envelhecer e o racismo no Brasil

Por

Manuela Hermes de Lima*

Em 05.04.2021

“Quando você me vir caminhando, tropeçando, não analise e entenda errado. Porque cansaço não é igual à preguiça e nem todo adeus é uma partida. Continuo a mesma pessoa que era antes, com um pouco menos de cabelo e um queixo menor, muito menos pulmões e muito menos fôlego, mas ainda tenho sorte de poder inspirar”. 

Maya Angelou, Sobre Envelhecer, Poesia Completa.

Há um ano a Organização Mundial da Saúde declarava a pandemia, alertando sobre os perigos da propagação do vírus SARC-Cov-2 e sua letalidade, enumerando os grupos considerados como de risco, assim compreendidas pessoas idosas e àquelas com comorbidades.

Algumas terminologias são utilizadas para fazer referência às pessoas com mais de 60 anos, categorizadas e incluídas no rol de pessoas idosas. Em razão do termo pejorativo e até dos estereótipos construídos em torno de expressões como velho/a, melhor idade, terceira idade, adotaremos a expressão pessoa idosa no presente artigo.

No Brasil já são mais de 20 milhões de pessoas idosas e, em 2050, a estimativa é de que 60 milhões de pessoas tenham 64 anos, apontando os dados fornecidos pelo IBGE um aumento de três anos na expectativa de vida de uma pessoa nascida no país em 2019 (76,6 anos) e, em relação à pessoa idosa, um aumento de 8,3 anos entre 1940 a 2019, no entanto, a expectativa de vida da população negra ainda é menor comparada com a branca. Estudos já apontam as repercussões da alta taxa de óbito e descontrole da pandemia no país como ameaça no campo da longevidade.

À medida que o vírus avançava pelo país em 2020, projetava-se com lentes de aumento as desigualdades socioeconômicas no país, sobretudo da população negra, emergindo uma maior suscetibilidade orgânica das pessoas negras idosas, marcadas pelo racismo estrutural e institucionalizado no país.

Pesquisa realizada em 2020 pelo Núcleo de Operações e Inteligência em Saúde (NOIS), organizada por Pesquisadores da PUC-Rio constatou o óbito por Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG) confirmadas para COVID-19 de 55% dos pretos e pardos em todas as faixas etárias, e maior óbito de pessoas negras idosas à medida que a idade aumentava, evidenciando um desequilíbrio de renda, escolaridade e acesso aos serviços básicos de saúde e sanitários entre as pessoas analisadas.

Na semana em que foram divulgados pelo Ministério da Saúde os dados sobre o número de pessoas vacinadas em todo país e microdados, com índice de vacinação em pessoas negras inferior ao de pessoas brancas, evidencia-se que as pessoas negras idosas seguem excluídas e têm suas vidas mais comprometidas pela dinâmica imposta pelo racismo. Assim, as pessoas brancas idosas no Brasil representam no Brasil seis a cada dez idosos com idade entre 80 e 99 anos.

Recentemente, pesquisa realizada em diversos estados e cidades, incluindo Salvador, com população estimada em 82,1% de pessoas negras, registrou decréscimo na natalidade, nos anos de 2018 e 2019, indicando a diminuição no nascimento de crianças negras que, associado a múltiplos fatores, sinaliza que população brasileira e, portanto, as pessoas negras, estão envelhecendo.

Ainda tratando da cidade de Salvador, chamou atenção o fato de que, iniciada a vacinação, logo nas primeiras semanas, o noticiário local informava sobre a imunização das pessoas nonagenárias e octagenárias, e seguia mostrando as filas intermináveis nos bairros nobres enquanto noutro ponto reservado à vacinação, numa área periférica da cidade, em que concentra maior número de pessoas negras, quase nenhum idoso/a apareceu, e não se verificava qualquer fila.

Envelhecer faz parte das etapas de um ciclo biológico na trajetória humana. Envelhecemos diariamente, desde que nascemos, num processo inevitável. 

Sobre o lugar de reverência das pessoas idosas e modelo de sociedade, (SOMÉ, Sobonfu, 2003) narra a centralidade dos anciãos do povo de Dagara, na África Ocidental, então responsáveis pela pela tomada de decisões, destino da comunidade, valorização da pessoa idosa e o respeito à sabedoria ancestral.

Pondera-se que só envelhece quem não morre jovem – e, nesse aspecto, assistimos ao extermínio da juventude negra – e que envelhecer é um privilégio, mas para quem? 

Nessa premissa, “o privilégio é um mecanismo de exclusão”, encontrando o privilégio racial amparo dentro dos sistemas de opressão que estruturam muitas sociedades, “conferindo vantagens aos membros dos grupos dominantes”, impondo esses sistemas de dominação desvantagens sistemáticas aos membros dos grupos minoritários (MOREIRA; ADILSON, 2020, p. 484)

Vivemos numa sociedade de negação do envelhecer e que não acolhe integralmente as pessoas idosas. A pandemia nos fez lançar o olhar para essas pessoas que, antes mesmo de um isolamento forçado, já estagiavam na solidão dos distanciamentos e negações. 

Assim, “condenar certos segmentos populacionais a uma situação de completo ostracismo social ofende os princípios básicos sobre os quais os regimes democráticos estão constituídos (MOREIRA; ADILSON, 2020, p. 742).

Sob outro prisma, a busca incessante pela fonte da juventude eterna, trouxe a perspectiva positiva de uma vida mais longeva e saudável, e que vem acompanhando de um ponto de inflexão sobre para quem se destina essa longevidade, porquanto as adversidades sociais e econômicas, a negligência estatal, tem retirado da população negra o direito de envelhecer dignamente e com melhor qualidade de vida, seja pelas dificuldades de acesso à moradia e condições sanitárias, educação (taxa de analfabetismo de 35,4% comparada com pessoas brancas de 21%, conforme pesquisa realizada em 2018 pelo IBGE) saúde integral, renda, obstando a mobilidade social da população negra.

O perfil da pessoa idosa negra é a que segue trabalhando, nem sempre por liberalidade, mas por absoluta necessidade, e a que enfrenta maior discriminação para continuidade ou ingresso em postos de trabalho por força do etarismo; também, a pessoa negra idosa é a que tem como fonte para sustento o teto básico da aposentadoria, quando alcançada e, agora, mais distante pelas sucessivas reformas promovidas em âmbito legislativo, ou LOAS/BPC, cujo critério para percepção é possuir mais de 65 anos e comprovar o estado de pobreza.

A parcela das pessoas negras e idosas continua contribuindo com o sustento da família e, quando necessário, sem que lhe seja assegurado os cuidados por ente da família ou pessoa contratada para esse fim. É a pessoa negra idosa que segue privada do básico e exposta às violações aos seus direitos fundamentais, assegurados nos artigos 229 e 230, da CF/88 e pela Lei nº 10.741/2003, doravante denominada Estatuto do Idoso.

É, preciso, pois, “considerar o envelhecer no contexto do capitalismo contemporâneo e na ótica do neoliberalismo” e “suas contradições, pois o Estado, em articulação com o mercado, busca reduzir direitos e benefícios, afetando todos os segmentos, inclusive o das pessoas idosas” (FALEIROS, VICENTE DE, Disponível aqui).

O envelhecimento é considerado uma conquista social. E o que estamos fazendo das pessoas negras idosas no país? 

No compromisso assumido pelo Brasil junto a ONU para efetivação de políticas públicas e metas fixadas na Agenda 2030 destacamos os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) 10.2 e 10.3, para eliminar a discriminação etária e empoderar e promover a inclusão social, econômica e política de todos, independentemente da idade, gênero, deficiência, raça, etnia, origem, religião, condição econômica ou outra, garantindo a igualdade de oportunidades e redução das desigualdades de resultados.

Assegurar políticas públicas direcionadas à população negra e idosa é urgente, visibilizando-as e reconhecendo a humanidade desta parcela da população.

Garantir que as pessoas negras idosas transitem nesta fase da existência com amparo, assistência integral, atenção, respeito aos seus reais interesses e vontade, estimulando o envelhecer ativo, deve ser prioridade do Estado brasileiro, da sociedade e da família, pois, em algum momento na escalada dos anos, seremos, com sorte, também, pessoas idosas e o ancestral de alguém.

*Manuela Hermes de Lima é Juíza do Trabalho no Estado da Bahia 

Artigo publicado originalmente no portal Justificando.