Ditadura: lembrar para esquecer
Mirtes Cordeiro*
Em 05.04.2021
Os nascidos no Brasil após 1964 não presenciaram o golpe militar nem vivenciaram um regime de exceção como foi a ditadura militar, que durou até 1985. Sobretudo a juventude de agora, que sequer teve notícias nos bancos das escolas porque passaram sobre o que representou para o país e para suas famílias o período ditatorial.
No entanto, surgem chuvas de pedidos nas redes sociais para que se comemore o fato, motivados pela imposição do atual governo Bolsonaro, saudoso que é de seus momentos piores, a repressão, a tortura e a morte.
Além disso, o presidente ensaiou uma pantomima, parte do seu sonho de militar irresponsável e ilusionista de produzir um golpe militar. Só se fosse contra ele próprio.
A ditadura deve ser lembrada para ser esquecida como um amontoado lixo da nossa história.
Então, essa semana que passou foi entrecortada de lembranças de fatos ocorridos durante a ditadura de 1964, o regime instaurado em 1 de abril de 1964 e que durou até 15 de março de 1985, sob comando de sucessivos militares que queriam um governo autoritário e nacionalista, substituindo o governo de João Goulart, democraticamente eleito pelo povo brasileiro.
A ditadura acabou quando José Sarney assumiu a presidência da República na condição de vice-presidente, substituindo o presidente Tancredo Neves, que havia sido eleito para o cargo pelo Congresso brasileiro, definido pela legislação vigente como Colégio Eleitoral, mas que faleceu antes da posse.
Acabou o período ditatorial, mas ficaram as marcas que nunca foram desfeitas, que são os crimes cometidos pelos órgãos de segurança ligados às Forças Armadas (Exército, Marinha e Aeronáutica) contra brasileiros que pensavam diferente e suas famílias – mulheres, jovens e crianças – que foram levadas para serem torturadas nas casas de tortura instaladas pelo Brasil afora. Os que desapareceram ou foram mortos no Araguaia ou em locais daquela luta desigual entre a força armada e militantes desarmados, tiveram seus corpos escondidos ou jogados ao mar e até hoje as famílias não tiveram direito ao resgate dos seus mortos.
O Congresso Nacional foi dissolvido. Não havia um parlamento para fazer a defesa do povo brasileiro.
O regime militar daquele período triste da história brasileira inspirou o modelo de outras ditaduras por toda a América Latina, através da sistematização da “Doutrina de Segurança Nacional“, a qual justificava ações militares como forma de proteger o “interesse da segurança nacional” em tempos de crise
Até hoje, em plena pandemia, o atual governo recorreu a tal doutrina para impedir governadores de três estados de exercerem suas funções criando medidas para impedir o avanço do novo coronavírus.
A ditadura negava as torturas e as mortes, que vieram à tona com o esforço das famílias, a solidariedade do Movimento pela Anistia iniciado pelas mulheres e posteriormente pela Comissão da Verdade.
As forças armadas que sustentavam o regime militar eram negacionistas, omitiam os fatos que desacreditavam o país diante do mundo.
Segundo alguns documentos sobre o período militar, “apesar das várias provas, os ofícios internos da Marinha do Brasil, do Exército Brasileiro e da Força Aérea Brasileira foram uníssonos em afirmar que em suas investigações não encontraram evidências que corroborassem ou negassem a tese de que houve “desvio formal de finalidade no uso de instalações militares”. Em maio de 2018, o Departamento de Estado dos Estados Unidos divulgou um memorando datado de 11 de abril de 1974, que havia sido enviado pelo diretor da CIA para Henry Kissinger, o então Secretário de Estado. O documento revelou que a cúpula da ditadura não apenas sabia, como também autorizava as torturas e assassinatos que foram cometidos contra os adversários do regime. Estima-se que houve 434 pessoas entre mortos e desaparecidos durante o regime, além de um genocídio de cerca de 8,3 mil índios. Sendo que 377 agentes públicos foram indicados como autores de crimes”. (Livro Brasil Nunca Mais, Coordenado por D. Paulo Evaristo Arns, arcebispo de São Paulo, e Jaime Wright, pastor Presbiteriano)
Na década de 1980, quando os militares já não conseguiam esconder o fracasso do ‘milagre econômico’ brasileiro, que teve seu auge em 1973/74, nem controlar a inflação, e já não conseguiam esconder um aprofundado processo de corrupção em curso, o governo ditatorial, negacionista e corrupto entrou em decadência.
Os militares não deixavam fluir informações sobre o que acontecia nos porões da tortura nem no mundo dos negócios com relação à corrupção aeao tráfico de influência. A imprensa funcionava debilmente, sobre forte censura. No entanto, superfaturamento, desvio de verbas, desvio de função, abuso de autoridade, tráfico de influências, tudo isso já era bem conhecido no Brasil da ditadura.
Conforme escrito de João Pedro Sartorelli, “a corrupção foi um dos fatores que mais abalaram a sociedade durante a ditadura militar. A corrupção da época da ditadura ainda afeta e prejudica a economia e a sociedade atual”.
Quem, da minha geração,não lembra do caso Lutfalla, do caso Delfin… da construção da Transamazônica – nunca concluída -, do dinheiro desviado das catedrais da Usina de Itaipu?
Na invenção do ‘milagre econômico’, as escolas foram sucateadas sob o pretexto de ampliação das matrículas na escola pública. “Ao final da ditadura militar, mais da metade das crianças que entravam na primeira série repetiam de ano”. (Nova Escola)
Maior número de crianças e adolescentes foi matriculado nas escolas, mas poucos aprendiam.
Professores que buscavam a pesquisa eram vistos como subversivos e não tiveram a liberdade de cátedra, ou seja, a liberdade para ensinar e pesquisar sem censura.
Durante a ditadura militar a saúde não era considerada um direito. O atendimento à saúde era feito somente para aqueles que tinham emprego formalizado com carteira de trabalho assinada pelo Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (Inamps), criado em 1974, o que era feito em grande parte por clínicas privadas. Ou seja, o governo federal repassava recursos a essas instituições ao invés de investir na saúde pública.
Segundo Carlos Fidelis, em seu livro Na corda bamba de sombrinha: a saúde no fio da história, o atendimento proporcionado pelo Inamps, no entanto, era feito através de processo de drenagem dos recursos públicos que passavam a capitalizar as empresas de medicina privada, transformando a saúde em um negócio bastante lucrativo.
Os trabalhadores tiveram seus salários achatados.
Nunca esqueço que meu tio Jorge, alfaiate, passou a vida pagando o Instituto de Previdência sobre o indicador/salário mínimo para se aposentar com 10 salários mínimos e, ao se aposentar, logo descobriu que não receberia nem três salários, considerando o valor do salário mínimo da época.
A adoção de medidas tão impopulares só era possível através do aparato repressivo do regime sobre os sindicatos, que diminuiu o poder dos movimentos e de negociação dos operários, com interferência na direção de alguns deles, o que levou muitos dirigentes à prisão, tortura e morte.
“Foi um crescimento às custas dos trabalhadores”, explica Vinicius Müller, professor de história econômica do Insper. O arrocho salarial acabou aliviando os custos das empresas
Foi no período ditatorial que enquanto crescia o Produto Interno Bruto (PIB), se iniciava um processo de profunda desigualdade social que segue acelerada até hoje, jogando um quarto da população brasileira – 52,7 milhões de pessoas – em situação de pobreza ou extrema pobreza. (IBGE)
É sempre bom lembrar que 44% dos brasileiros abaixo da linha de pobreza em 2018 estavam na região Nordeste, que todos os estados das regiões Norte e Nordeste apresentaram indicadores de pobreza acima da média nacional, sendo o Maranhão estado campeão dessa tragédia, com 53% dos seus cidadãos sobrevivendo na linha de pobreza.
Por tudo que representaram os governos da ditadura que nos levou – a grande parte da população – à construção da redemocratização do país, vivenciando experiências positivas respaldadas pela da Lei da Anistia aprovada em 1979, não cabe agora acomodar a ideia de que é preciso comemorar um período tão nefasto em nossas vidas.
Essa parte da nossa história deve ser lembrada para ser esquecida.
Atravessamos uma pandemia, estamos chorando os mortos vítimas do vírus, mas também dos desmandos do governo do momento.
Precisamos vacinar a população do país e seguir trabalhando pelo aperfeiçoamento da Democracia.
*Mirtes Cordeiro é pedagoga. Escreve às segundas-feiras.
Os textos aqui publicados não refletem necessariamente a opinião do blog Falou e Disse.
Ditadura nunca mais!! Concordo
Com vc, Mirtes, essa parte da história brasileira, precisa ser lembrada para as gerações que não viveram nesse período mas para ser esquecida por aqueles que viveram ou que tiveram consequências na sua vida advindo desse período!! Viva a democracia