Trabalho escravo e morte na Copa do Mundo de 2022

Por

Reginaldo Melhado*

Em 18.04.2021

Mais de sete mil imigrantes morreram no Catar desde que o país foi escolhido, há dez anos, para sediar o próximo mundial de futebol de 2022 e iniciou a vertiginosa erupção de obras preparatórias para o evento. Centenas dessas pessoas — isso mesmo, estimado leitor e prezada leitora: centenas — encontram a morte em acidente de trabalho. O número de suicídios também é assustador.

Para receber o badalado e lucrativo evento esportivo, o Catar vem realizando um programa de obras que inclui a construção de sete estádios, um novo aeroporto, rodovias, sistemas de transporte público e hotéis. Até mesmo uma cidade zero quilômetro, Lusail, está brotando do chão arenoso catariano, a 25 km de Doha, a capital do país. Para edificar esse milagre de concreto, ferro e aço, centenas de milhares de trabalhadores imigraram do sul asiático para o Catar, o riquíssimo emirado árabe dirigido com mão de ferro e poder absoluto pela dinastia Al Thani. O país tem 2,8 milhões de habitantes e a astronômica renda per capita de US$ 144 mil (22 vezes a do Brasil e 2,5 vezes a dos Estados Unidos), mas é também campeão mundial de concentração de renda, sendo secundado neste triste torneio pelo país atualmente dirigido pelo Sr. Jair Bolsonaro.

Cerca de 95% dos assalariados do Catar são imigrantes, e no setor da construção eles chegam a 99%.

Em mais um excelente exemplo de bom jornalismo investigativo, o jornal The Guardian publicou recente reportagem mostrando as condições de vida — e de morte — de trabalhadores imigrantes no Catar durante as obras do Mundial de Futebol. Segundo o periódico londrino, mais de sete mil imigrantes já morreram no emirado, sendo muitos desses óbitos relacionados direta ou indiretamente com suas condições de trabalho e de vida.

Os repórteres do Guardian obtiveram documentos e informações nas embaixadas dos maiores fornecedores de mão de obra para o Catar (Índia, Bangladesh, Nepal, Sri Lanka e Paquistão), foram a campo, levantaram informações e entrevistaram trabalhadores. Os dados são aterrorizantes — mostram 6.750 mortes de imigrantes entre dezembro de 2010 e dezembro de 2020 — e não incluem informações de diversos países responsáveis por outras correntes migratórias, como Filipinas e Quênia. No desespero da fome e da miséria do lumpesinato de seus países, essa gente se agarra às esperanças de uma vida melhor no eldorado nada dourado catariano. A maioria deixa as famílias em seus países e vai de mala e cuia, sozinha, em busca da tábua de salvação dos petrodólares que, para muitos, acaba sendo uma prancha de navio pirata onde caminham com bolas de canhão amarradas aos pés.

Acidentes de trabalho e suicídios

Segundo apurou o Guardian, uma parte importante dessas vidas foram ceifadas por acidentes de trabalho: apenas entre os imigrantes da Índia, Nepal e Bangladesh, foram cerca de 500 mortes de trabalhadores (7% do total) com essa causa. Esse número, entretanto, pode ser ainda maior. Mais de 800 outros trabalhadores morreram em acidentes de trânsito e grande parte deles ocorreram no trajeto para o trabalho e seu retorno, nas condições precárias do transporte, no tráfego caótico da região. Além disso, há inúmeros e estranhos registros de mortes por “causas naturais” durante o trabalho.

Apenas na construção de estádios, foram catalogadas oficialmente 37 óbitos no Catar. Nas obras da Copa de 2014 o Brasil chocou o mundo quando nove operários perderam a vida em acidentes de trabalho na construção e reforma dos nossos estádios, número quatro vezes maior que o registrado nas obras da Copa do Mundo da África do Sul, em 2010.

É chocante o número de imigrantes que tiram a própria vida no Catar. Nada menos do que 7% das mortes dos últimos dez anos resultaram de suicídio. São cerca de 500 casos e muitos deles podem estar ligados às condições de trabalho degradantes desses trabalhadores.

O índice de óbitos entre pessoas jovens por “causas naturais”, cogita-se, também poderia estar associado ao trabalho sob as elevadíssimas temperaturas do verão desértico e seco do Catar (nos períodos mais quentes, até 50°C). Estudo desenvolvido pela Organização Internacional do Trabalho mostrou “elevado” ou “extremo” risco de estresse térmico, com a temperatura corpórea dos operários subindo a 39° nas atividades laborais a céu aberto durante os quatro meses mais quentes do ano. É bem possível, portanto, que o trabalho sob calor intenso possa ter atuado como causa direta ou indireta para esse misterioso número de mortes por “causas naturais”, vitimando pessoas jovens e saudáveis, como revelou a reportagem do Guardian.

Trabalho escravo

Exploração e abuso também vêm sendo constantes entre os imigrantes no Catar. O escravo contemporâneo, no conceito curto e grosso de José Claudio Monteiro de Brito Filho, é apenas a antítese do trabalho digno e decente.[1] No universo dos trabalhadores imigrantes do Catar, todos os ingredientes da definição de trabalho escravo contemporâneo aparecem aos borbotões. Há trabalho forçado e condições degradantes, como a restrição ao direito de se locomover e até mesmo de retornar para o país de origem, retenção de salários, dívidas contraídas com a empresa, maus tratos e até falta de alimentação e água.

Reportagem do mesmo jornal The Guardian de anos atrás revelou trabalho forçado e superexploração dos imigrantes e trabalhadores sem receber salários durante meses. Essa situação em grande parte se mantém atualmente. Nas obras do Estádio Al Bayt, operários permaneceram sete meses sem receber sua remuneração. Alguns sofrem apreensão de passaportes ou recusa à emissão de documentos de identidade locais, fazendo com que se vejam na condição de imigrantes ilegais, além de não ter como retornar a seus países de origem legalmente e sofrer o risco de serem deportados. O sistema de documentação que deixava o trabalhador nas mãos da empresa até para poder deixar o país, conhecido como kafala, foi modificado em 2019 pelo governo catariano, depois de muita pressão externa, mas os imigrantes ainda são obrigados a informar o empregador 72 horas antes de sair do país. Denunciou-se até mesmo dificuldade de acesso a água potável no calor extremo daquela região desértica. Tudo isso praticado não apenas por construtoras, mas também por empresas terceirizadas, que exponenciam a exploração do trabalho desses imigrantes.

Para piorar ainda mais a situação, os imigrantes deixam seus países de origem já com uma dívida importante junto aos intermediários de mão de obra, no processo de recrutamento e depois na de viagem para o Catar.

Dias atrás, a Anistia Internacional, talvez tardiamente, encaminhou documento ao presidente da Fifa, Gianni Infantino, no qual pede que a entidade organizadora da Copa do Mundo “cumpra suas responsabilidades” e exija das autoridades do Catar o fim do “abuso de trabalhadores migrantes” e atue para “prevenir, mitigar e reparar os riscos aos direitos humanos”, instando o governo do Catar a cumprir um programa de reformas trabalhistas antes do início da Copa. Conquanto reconheça a atuação positiva dos últimos anos, com a atenuação de problemas e algumas mudanças na legislação catariana, a Anistia Internacional sublinha no documento prevalecerem ainda hoje “sérios abusos” contra os trabalhadores, mostrando que muito ainda há por ser feito.

Por certo, estudos mais aprofundados um dia poderão esclarecer a relação entre a alta incidência de suicídios e mortes por “causas naturais” entre operários imigrantes no Catar e as condições de trabalho degradante a que são submetidos.

Se o mundo do futebol fosse mesmo sério…

O futebol é mercadoria cara aos interesses do grande capital. Satisfaz necessidades da fantasia, e por isso vale tanto dinheiro, mas para os trabalhadores imigrantes do Catar ele se apresentou como uma esperança para os imperativos do estômago. O milionário esporte bretão tem deixado atrás de si um rastro de corrupção, cada vez mais evidenciado desde a eclosão dos escândalos de 2015, inclusive com revelações contundentes sobre ações indecentes no processo de escolha da sede do torneio mundial de 2022, cujo vencedor foi justamente o Catar. Agora atrás de si há também um rastro de mortes e sofrimento.

Que reação se poderia esperar da humanidade frente a um quadro de horrores como esse dos operários imigrantes do Catar? Nações ditas civilizadas, como tradicionais, democráticos e bons de bola países europeus, jamais poderiam aceitar o jogo sujo dos bilhões de dólares dos Al Thani. Empresários não deveriam sujar suas mãos com esse negócio. Nós, consumidores, jamais poderíamos admitir essa crueldade inaceitável. Cabe ao planeta, no mínimo, boicotar a Copa do Mundo de 2022, deixando de patrocinar e consumir essa que será a mais trágica e fétida versão do mundial de futebol.

*Reginaldo Melhado é membro da Associação Juízes para a Democracia. Doutor em Teoria Geral e Filosofia do Direito pela Universidade de Barcelona/USP. Professor da UEL. Juiz titular da 6ª Vara do Trabalho de Londrina.

Notas:

BRITO FILHO, José Claudio Monteiro. Trabalho escravo: caracterização jurídica. São Paulo: LTr, 2014, p. 15.

Artigo publicado originalmente no portal Justificando.

Este texto não reflete necessariamente a opinião do blog Falou e Disse.