“São tantas emoções, bicho!”
Rômulo Rossy Leal Carvalho*
Em 19.04.2021
19 de abril de 1941 foi a data em que as portas dessa dimensão foram abertas para um indivíduo que, aos nove anos, levado pela mãe para uma rádio local, chegaria à marca, em um futuro promissor e misterioso, da venda de mais de cento e vinte milhões de discos. Capixaba, filho de dona Laura Braga, sua eterna “Lady” – termo que usou a partir da composição de 1978, em Nova York, e talvez por isso a expressão -, e de seu Robertino Braga, Roberto Carlos Braga, chega às suas oitenta primaveras – azuis – e aos seus quase sessenta e dois de carreira, hoje.
Creio que posso estar equivocado quanto aos anos de carreira. Se considerarmos a primeira vez que Roberto cantou e encantou na Rádio local, sua carreira somaria setenta e um anos. A escolha do ano de 1958, na realidade, se deu muito mais em função da parceria com o amigo Erasmo Carlos, com os muitos pernoites em bairros fluminenses, onde também conheceu Tião da Tijuca, o ‘Síndico’ Tim Maia e com quem cantou, no grupo musical “Os Sputniks” – termo escolhido por Tim em alusão à nave russa que fôra ao espaço num intervalo da Guerra Fria.
Antes disso, aos seis – tema do qual se reserva a falar – teve um trágico acontecimento em sua vida: a prensa da perna direita em um trem e a consequente perda deste membro até perto do joelho, nos arrabaldes da Igreja de São Pedro, em Cachoeiro do Itapemirim (ES), onde nasceu. O homem que o “salvou”, anos depois tornou-se seu padrinho de batismo, na Igreja Católica, aos vinte e três anos, por escolha própria, sendo que, perdendo sua perna, olhava para o céu tentando encontrar esperança – foi o que pensou sentado no – divã. O trauma não o venceu, nem ele venceu por completo o trauma, mas a saída de casa, a busca pelo sucesso no canto, na composição, descerraram-lhe condições imprescindíveis para que, num tempo não muito distante, alvejasse um sucesso que, à época, foi contumaz.
A onda nos meados de sessenta era o rock. Tim, sobressaltado, inconformista, queria o soul. Roberto, por sua vez, com talento, inteligência e perspicácia, percorreu o trilho do trem que, na indiferença da realidade histórico-política que sofria o Brasil no período, seguiu pela ferrovia para a estação em que só se pensava nos “brotos”. Nada ali de arte essencialmente politizada, crítica, denunciativa, como talvez o fizera a Tropicália.
Consagrado Rei, e recebendo da mão de sua Lady a coroa, pelo bem-sucedido Programa da Jovem Guarda, Roberto, nos anos posteriores flanou pela bossa nova, rock, até chegar na música romântica, que, cá entre nós, fôra, muito provavelmente, um desejo antigo, talvez aquele que tenha pensado enquanto aguardava o trem, com seu paletó de brim, ao sair de casa aos dezessete anos.
Dos seus amores, Nice lhe galhardeara com o primeiro filho, o Segundinho, que o fizera, se observarmos bem, repensar questões que, tempos depois, lhe alvejaram com seus muitos TOC’s (Transtorno Obsessivo Compulsivo). Praticamente cego, os pais conduziram-na até para a Holanda, mas todos os riscos eram periclitantes demais. Roberto, que já havia dito que “tudo fosse para o inferno”, em canção, adotou uma postura que, pela doença até então para ele -e por muitos anos desconhecida – o fizera não pronunciar “inferno”, “mal”, “diabo”. O menino, todavia, não ficou cego. Hoje enxerga e verá, ao menos com a alma clara, o genitor chegar aos seus oitenta anos – assim esperamos.
O romance com a atriz Miriam Rios, no tempo que durou, foi palco para a inspiração de composições como “A atriz”, mas o “amor sem limite” transcorreu com aquela que, bem mais jovem, o outorgou a ter a petulância de dizer que sobre amor, “eu sei tudo”.
O amor com Maria Rita, professora e católica fervorosa, certamente fez com que o cantor repensasse uma série de particularidades que envolveram sua vida no passado: a díade entre o espiritismo e o catolicismo. Seu Robertino, espírita confesso, amigo de Chico Xavier, o inspirou, inclusive, a compor “O homem bom”; já Laura, católica atuante, o lembrara os afagos da Mãe de Jesus, inspiração em canções como “Nossa Senhora” e “Todas as Nossas Senhoras”.
A eminente figura de Jesus passou a ser centro de uma leva de composições. Escreveu tantas junto a Erasmo – que não professa fé – que algumas até tiveram que repetir os adjetivos por já não lembrarem de outro para substituir certas palavras como a tríade: luz, cruz e Jesus.
Com seu “maninho” Erasmo, e a “maninha” Wanderléa, Roberto virou o “bicho”, mas o tempo é sempre uma incógnita, e numa dessas o amor, que tão doce, sincero, público, notório, por Maria Rita, foi interrompido em dezembro de 1999, com o passamento desta, não sem antes ele, tendo recebido do papa São João Paulo II um terço que marcou, simbolicamente, sua despedida do corpo físico da amada, tenha ido deixá-lo no túmulo da mesma. O retorno aos palcos, em setembro de 2000, no Recife, o fez errar uma primeira nota – deixando a banda atônita, haja vista que não é praxe de Roberto – enquanto Pe. Antônio Maria e o filho do cantor, Dudu Braga, rezavam no camarote por ele. Cantou as músicas já consagradas, e na clássica “Outra Vez”, de Isolda, trocou o tempo do verbo na frase: “Você foi” para “Você é” porque acredita que um grande amor “para sempre será” – de quem ama verdadeiramente.
Os anos de Roberto condizem muito com suas letras. Como ele, em 2009, nos seus cinquenta anos de carreira, no Maracanã, confessou: “Não é possível viver a vida que eu vivo sem as canções que eu canto, nem seriam possíveis as canções que eu canto sem a vida que eu vivo”. E essa vida musical, antes irrequieta, depois metódica, disciplinada, restrita, e posteriormente religiosa, aprofundou atitudes que, aparentemente, não têm sentido: não usar marrom, não falar certas palavras, não realizar shows em dia 13 (promessa), não girar o carro à esquerda, não sair por outra porta senão a que entrou.
Enfim, esse é um dos Robertos que, por muitos, entre os quais se destacam os artistas que, diga-se de passagem, militaram contra a ditadura civil-militar, e mesmo sendo seus amigos, o têm por um sujeito não politizado. Isso não é possível. Roberto é político sim, mas talvez do amor. Não talvez. Ele é do amor. E soube agir, muito embora não compreendido, a seu modo, na política – essa questão, porém, queda ambígua devido à própria leitura que cada sujeito tem de sua situação em um contexto no qual centenas e centenas de pessoas, talvez até seus fãs, sumiram nos porões, por tortura, e nem uma perna, como a que nele falta, foi encontrada.
Sinuoso como as curvas da estrada de Santos, seu destino esteve entrelaçado ao amor e ódio de muitos brasileiros, que nele aplicaram volúveis, voláteis e variados signos. Não autorizar que sua biografia fosse publicada, processar quem usasse canções sem sua autorização foram apenas alguns dos passos, a ele e à justiça, até determinado ângulo, legítimos, que foram o tornando um ser cheio de particularidades e inquietudes que todo ser humano tem. O fascínio e o desencanto de outros artistas abortaram face à megaestrutura que se instala perante à envergadura de um artista que resiste ao tempo com suas canções, e dele sabe se servir para prover-se, sobremaneira, midiática e financeiramente.
É exequível pensar, pois, que sobre Roberto há um processo de mitificação. Isso acontece com a grande maioria dos artistas. Minha família materna e paterna sempre enxergou em Roberto Carlos uma marca indissolúvel, indestrutível, incomparável. Minha bisavó, Onezina, inclusive, que não tinha energia elétrica em casa, dirigia-se, a pé, ao povoado vizinho, Presidente Juscelino, no município de São Julião (PI), para o especial de fim de ano do Rei, na Rede Globo.
Foi isso – algo enfatizado por Erasmo Carlos e Paulo César de Araújo – que tornara Roberto um cantor popular: a sua forma de se comunicar e as suas letras, não todas, mas boa parte delas, constituintes de um padrão revelador do que muitos brasileiros gostam de ouvir: melodias e versos compreensíveis tanto do analfabeto até o doutor.
Num telefonema, Jerry Adriani, grande artista brasileiro, dias antes de falecer, em 2017, recebeu o carinho do amigo jovem-guardista Roberto, o que à época teria-lhe, inclusive, feito muito bem. Entre a admiração, o fascínio, o rancor, o ódio, existem uma série de pontes e de lacunas. Roberto é um ser humano para além de um artista. Artistas são estranhos – até certo limite.
Limites não existiram para o menino de Cachoeiro, e o destino não lhe fôra brando. Talvez exigir que ele militasse contra toda uma frente extremista fosse pedir muito, mas, sem sombra de dúvida, exigir que ele tivesse empatia como Tim, Erasmo, Caetano, Gilberto tiveram, foi, é e sempre será uma tarefa para personalidades que se comunicam com milhões de pessoas. Não se passa pano para opressão política e social por conveniência – existem milhões de pessoas que nele se inspiram.
Ainda aguardo conhecê-lo pessoalmente. Creio que essa possibilidade é mais remota que as aulas que tenho ministrado nesse período de pandemia. Com seus trejeitos característicos de mexer o microfone e o ombro, de lançar rosas para o público, e, sobretudo, emocionar, Roberto Carlos Braga chega aos oitenta anos sendo ainda motivo de controvérsia entre os que o admiram, os que nele se inspiram, os que o detestam e os que o vilipendiam. Nessa torrente irrepresável ele continua a viver e a cantar, como o faz o coro de passarinhos que um dia desejou para o mundo, e que sei que ainda deseja. Se não alcançou um milhão de amigos, creio que inimigos também não. Por outro lado, ser fã não é tapar os olhos face a quem se admira; é também mergulhar no universo do artista em seu reclinar e declinar.
Roberto é a linha tênue entre um músico e um humano carregado de predicados e defeitos. À sua memória certamente se aliarão outras infinitas, cada uma a seu modo, sinalizando o perfil de um cantor emotivo, disciplinado, do banco do seu eterno calhambeque, ou sentado à beira do caminho, esperando a hora – que já chegou – em que adentrou e tem adentrado para a história. Na contramão.
*Rômulo Rossy Leal Carvalho é professor, historiador, poeta e cronista.