Onde estava Deus?

Por
Ayrton Maciel*
Em 19.04.2021
Quando a morte distante é capaz de comover, fazer refletir e deixar um sentimento de culpa? Por não ser parente ou de família amiga ou de uma celebridade, e a dor estar tão longe aos olhos, por que uma morte abala e desacredita a mínima esperança no ser humano? Quando a morte nos faz questionar: onde estava Deus? O ‘sacrifício’ de Henry Borel, o menino de 4 anos do Rio de Janeiro, nos faz sentir incapazes, e incessantemente nos perguntar: como eu não consegui evitar? Por que não estava lá para impedir? E mais frágeis: por que Deus não imobilizou os pés e as mãos da fera? Tudo nos indaga e nos coloca diante das nossas omissões.
A dor de Henry vai nos doer o resto da vida. A cada recordação teremos de lhe pedir perdão, por termos sido fracos, pela covardia ao não tomarmos a iniciativa de salvá-lo. É verdade que, no mundo, milhares – talvez milhões – de crianças, de quatro anos e mais, padecem de todas as dores: fome, indiferença, violência física, desamor. Porém, o sofrimento de Henry foi tão duradouro e amplo que é  impensável imaginar o ser humano – o algoz – como uma criação à imagem de Deus. Dirão que Deus concedeu o livre arbítrio a cada um. Não cabe questionar a Deus por omissão, seria algo profundo, uma discussão infindável e improdutiva, porque não nos livraria do sentimento de culpa.
A ausência e a omissão da mãe, sim. Essas doeram em Henry, que ao custo da própria vida buscou proteger todo o tempo quem lhe deu a vida, a mãe que não lhe impediu a morte. O amor que a ela Henry declarava não foi retribuído. Em seus últimos dias de esperança, talvez de resgate, viveu torturas física, emocional e mental permanentes, e onde estava Monique (fora e dentro de casa)? Ausente, ensimesmada em sua vaidade, em prioridades tão insignificantes diante da vida. Na babá, Henry procurou proteção, teve carinho, mas a negligência do silêncio a condenará ao remorso. Por que não denunciou aquele sofrimento de Henry ao pai, avós, tios, vizinhos ou à polícia?
Por que ninguém próximo nada fez para impedir aquela dor? Como o pai não procurou saber da vida do filho? Henry mandava sinais, pedia socorro. E sobre nós, tão distantes, diante do desfecho cai a constatação de nossos egoísmo e culpa diárias. Se testemunhamos ou sentimos o mal tão iminente e fronteiriço, optamos por não interferir, fechar os olhos e ouvidos. Assunto de casal ou entre vizinhos, responsabilidade de polícia ou de governo, e assim isentamos de culpa a nossa omissão e negligência.
O ser humano é mau. É o seu instinto, que muitas vezes o racional é incapaz de conter. É o que nos faz perder a esperança na sua mudança. A pergunta final talvez não seja “Onde estava Deus?”. Talvez seja: “Onde estávamos todos nós que não conseguimos impedir Henry de morrer?” Nem impedimos a todos os Henry de sofrerem. Henry será uma dor eterna.
*Ayrton Maciel é jornalista. Trabalhou no Dario de Pernambuco, Jornal do Commercio e nas rádios Jornal, Olinda e Tamandaré. Ganhador do Prêmio Esso Regional Nordeste de 1991.
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