Um país de bastidor. Tudo que não se pode querer
Ayrton Maciel*
Em 26.04.2021
Corrupção e Operação Lava Jato, política e cidadania, Judiciário e ex-juiz Sérgio Moro. Relações que estiveram em questão na recente década e que ainda respingam consequências no Brasil. O ponto de partida para uma análise é único: ninguém é a favor da corrupção. Nenhuma ideologia política e nenhum partido político tem por princípio a corrupção, no seu conjunto de doutrinas e visões. O que não é suficiente para impedir a sua prática. Para a corrupção o antídoto é a investigação e a punição, para a política o tratamento é a liberdade que assegura a cidadania, para o Judiciário a sua garantia é a independência e a isenção. Falamos das democracias ocidentais.
De Atenas a Brasília, democracia não é mais do que um conjunto de conceitos ordenados e interligados que deveriam ser praticados, como se bebe naturalmente água: as leis, os direitos humanos, as liberdades de expressão e de imprensa, a acusação, o contraditório e a condenação com provas. Insustentável é alegar indícios e convicções pessoais. A corrupção não é um princípio de ideologia, não é por ser esquerda ou direita – partido e indivíduo – que a sua prática está vinculada. Em verdade, é princípio comum das ideologias o combate à corrupção, por ser base concreta da continuidade de governos. Nenhuma ideologia sobrevive se tolerar a corrupção. É básico.
Falemos sobre a Lava Jato: sobre a antagônica – por não ser isenta – e quase morta operação há muito o que se revelar. Mais do que já se descobriu em gravações não-autorizadas, que, embora ilegais, tornaram-se legítimas, por serem necessárias à verdade, pela oportunidade de revelar que a Justiça nem sempre é isenta, e pode ser sigilosamente política. Eis um caso em que o questionamento sobre a legalidade das provas ou da sua obtenção foi derrotado pelo seu conteúdo. Há o que se revelar sobre o ex-juiz Sérgio Moro e os procuradores do MPF de Curitiba. Indícios e convicções, substantivos que serviram para condenar o ex-presidente Lula, capitularam a isenção da Justiça.
Não é isento também afirmar que não houve corrupção, os esquemas partidários que justificaram a Operação Lava Jato. Nem que não houve corrupção em outros setores. Nem que não houve em outros governos (não é necessário descender pela história do Brasil). Nem é isento afirmar, igualmente, que não houve perseguição: caça e caçador. Sérgio Moro aceitou ser o instrumento político de uma caçada. A ação de uma ideologia contra outra ideologia. As gravações ilegais são provas materiais que condenam Sérgio Moro e a força-tarefa de Deltan Dallagnol, materialidade que a Lava Jato não teve para condenar de forma isenta a Lula. Resta claro que condenar a todo custo, tornar Lula inelegível e destituir a ideologia no poder eram objetivos políticos.
O combate à corrupção será sempre uma obrigação de qualquer ideologia. A política e a cidadania não resistem ao fracasso do combate. Democracias não suportam a corrupção, nem as ideologias mais dogmáticas, porque a corrupção é a ferrugem da política, não tem como não afetar a cidadania. O que (sempre) se espera é que o combate seja limpo, que os combatentes não se corrompam, não se tornem caçadores em busca de vindita política. Eis o espaço do Judiciário: tirar o joio do meio do trigo. Embora tardia, porque a prisão não tem compensação, o Supremo Tribunal Federal (STF) tem feito a reparação dos fatos, que é a restauração da isenção. A Corte não julgou culpa ou inocência, mas a inexistência de isenção de Moro. Por extensão, da força-tarefa do MPF de Curitiba.
Ninguém troca uma magistratura de mais de 20 anos por um ministério de governo e uma promessa de ascensão ao topo do Judiciário sem uma inspiração política. O projeto é que não levou em conta o imprevisível. Para Sérgio Moro, seria o corolário de uma obrigação (uma investigação), que tornou-se uma militante missão ideológica (liquidar o adversário) e acabou num projeto político-institucional (o caminho ao Supremo) fracassado. Do ovo político que se tornou a Lava Jato, o nascido Jair Bolsonaro só queria o prestígio do justiceiro. Moro sabia que, como ministro da Justiça, caberia a proteção aos Bolsonaro – a Polícia Federal não poderia estar livre -, a perseguição a adversários e o respaldo à reeleição em 2022.
As decisões recentes do STF sobre a incompetência da 13ª Vara de Curitiba para julgar Lula e o reconhecimento da parcialidade de Sérgio Moro, instruindo investigações e denúncias para então julgar, são a retomada do curso normal da democracia. Política e cidadania, e isenção de quem julga, são vitais. Combater a corrupção, também. Mas na legalidade. O argumento das gravações ilegais não está acima da verdade e da Justiça com isenção. Depois do The Intercept, gravação não autorizada é um tema a ser discutido: fundamentais são a autenticidade e a inviolabilidade. O desconhecimento é fraude à Justiça. A verdade é inimiga astuta da canalhice, sempre virá à tona, mesmo que não autorizada. Ninguém pode querer um país moralmente decadente, nem humanamente indecente. Para não ser assim, também não pode ser um país onde prevalece o bastidor.
Ayrton Maciel é jornalista. Trabalhou no Dario de Pernambuco, Jornal do Commercio e nas rádios Jornal, Olinda e Tamandaré. Ganhador do Prêmio Esso Regional Nordeste de 1991.
Este texto não reflete necessariamente a opinião do blog Falou e Disse.
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