Seguimos vivendo…e pelejando
Mirtes Cordeiro*
Em 10.05.2021
Quando assumi a direção da Fundação que cuidava dos adolescentes privados de liberdade em Pernambuco, em 2005, fui tomada de medo pelo que encontramos na sociedade, da qual meninas e meninos infratores que se encontravam “presos” eram, para mim, a maior expressão.
Estávamos num momento em que surgiam com maior vigor os crimes praticados por crianças e adolescentes ligados ao estupro e ao tráfico de drogas. Encontrei no Centro de Ressocialização de Petrolina um jovem de 16 anos, casado, pai de uma menina de um ano, cumprindo pena por ser trabalhador nas roças de maconha, nas terras dos índios Truká, acusado pelo tráfico de drogas. Segundo ele, não compreendia o motivo da irregularidade e se indagava porque só alguns trabalhadores foram punidos, enquanto os donos das terras e os provedores do plantio continuavam vivendo suas vidas dentro da normalidade.
Um dia um juiz da infância pediu para que abrigássemos uma criança que morava no bairro dos Coelhos que lhe havia sido entregue pela polícia com uniforme escolar e a mochila da escola cheia de papelotes de maconha. A polícia desconfiou que apesar de uniformizada, a criança com dez anos de idade passava o dia circulando pelo bairro. A criança foi para um abrigo por uns dias, uma situação de risco, porque os donos do tráfico fizeram uma espécie de campana nas proximidades. Posteriormente descobrimos que a família inteira participava da rede de tráfico no bairro, como se fosse uma forma simples de obter renda para sobrevivência.
Quando aconteciam as visitas familiares aos centros de ressocialização, aos domingos, muitas vezes encontrávamos mães que usavam as visitas para sedimentar o vínculo dos filhos adolescentes com os grupos de traficantes de alguns bairros, sobretudo na Região Metropolitana do Recife. Algumas falavam da necessidade de proteção familiar e seguir sobrevivendo com a renda da venda da droga.
Aliás, só mães e avós apareciam nas visitas.
Estávamos há 23 anos do início do processo de redemocratização do país e há 17 anos da promulgação da Constituição Cidadã de 1988.
As mudanças eram muito tímidas… e continuam tímidas até hoje.
Em 2018, uma pesquisa do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) concluiu que havia, no Brasil, cerca de 22.640 jovens privados de liberdade, internados em um dos 461 estabelecimentos socioeducativos existentes no país, acusados de terem praticado algum ato infracional. O resultado não levava em conta outros milhares de crianças e adolescentes que cumpriam medidas socioeducativas em liberdade assistida, em regime de semiliberdade ou a quem a Justiça impôs a obrigação de prestar serviços à comunidade. (Agencia Brasil)
O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) havia sido criado há 15 anos, em 1990, fruto de grande articulação da sociedade civil e pressão dos movimentos sociais, das Igrejas progressistas e ativistas dos direitos humanos. “O ECA é um marco regulatório, nele determinado que é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar aos jovens o direito a saúde, educação, cultura, lazer, entre outros direitos. O texto também destaca a obrigatoriedade de proteger as crianças e os adolescentes de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. No ECA há ainda regras para combater o trabalho infantil e a exploração sexual”.
No entanto, a Lei não foi compreendida nem ganhou força neste país que cultivou 300 anos de escravidão de índios e africanos e até hoje faz o seu desenvolvimento otimizando lucros na base da opressão, inclusive se utilizando do trabalho infantil.
Estou buscando algumas lembranças sobre essas questões por mim vivenciadas, porque não posso deixar de expor a minha indignação sobre o massacre na favela de Jacarezinho, no Rio de Janeiro.
O argumento principal expresso pelos policiais na mídia, era a ação de aliciamento de crianças pelos traficantes para o “trabalho” no tráfico de drogas. “No dia 05 de maio de 2021 foi deflagrada a Operação Exceptis pela Delegacia da Criança e do Adolescente Vítima (DCAV), em conjunto com outras delegacias da Polícia Civil do Rio, com o objetivo de prender acusados de aliciar crianças e adolescentes para o tráfico de drogas na comunidade”. (Wikipédia)
Desta vez, 29 mortos, sendo 27 civis e um policial militar.
Lembro-me, então, da Chacina da Candelária. Várias crianças abandonadas pelas famílias e pelo Estado, vivendo nas ruas, para se protegerem, se alojaram à noite na frente da Igreja, para abrigar o sono, quando sofreram o massacre. Também da Chacina de Vigário Geral e tantas outras.
Segundo o G1 publicou em 2019, no espaço de dez anos, no Rio de Janeiro, aconteceram mais de 400 chacinas, com 1.300 mortos. Os dados foram obtidos no Instituto de Segurança Pública, através da Lei de Acesso à informação.
É possível que se visitarmos hoje a favela do Jacarezinho, onde vive uma população estimada em mais de 36 mil habitantes, segundo dados de 2004/prefeitura, não encontremos indícios de políticas públicas para o atendimento à população, previstas pela Constituição e pelo ECA.
Jacarezinho pode ser considerado um quilombo urbano. É o que fala Rumba Gabriel, morador da favela há 65 anos, líder comunitário. ‘’Podemos afirmar que Jacarezinho é um quilombo urbano. Muitos acham que quilombos só são os que ficam no interior, mas se esquecem dos negros que vieram para o centro. O Rio de Janeiro recebeu mais de 1 milhão de negros para serem escravizados ali no Cais do Valongo, que foi abandonado,c omo tudo o que é nosso é abandonado. Esses negros que chegavam ao Rio não iam para o interior. Eles iam para lugares como Jacarezinho, onde ocorreu a maior concentração de negros em favelas no Rio de Janeiro”.
Posteriormente, já em 1970, surgiram as milícias, cujos resultados ora sentimos no dia a dia pelo Brasil inteiro.
Ano de 2021, crianças e adolescentes continuam sem a proteção integral em todos os recantos deste país, sendo alvo fácil para a exploração sexual, para o tráfico de drogas, para o trabalho infantil e para outras formas de opressão.
Para combater o tráfico de drogas, a violência, o trabalho infantil e todas as formas de proteção, é preciso começar a proteger as crianças desde o nascimento – conforme as leis brasileiras – com creches e escolas em tempo integral e professores bem formados. Apoiar as famílias com políticas sociais básicas como moradia, qualificação para o trabalho, renda mínima aos mais vulneráveis. As leis estão todas aí para serem cumpridas. Falta atitude responsável.
Seguimos vivendo… e pelejando…
Hoje, mais de 422 mil mortos pela irresponsabilidade no enfrentamento ao vírus.
*Mirtes Cordeiro é pedagoga. Escreve às segundas-feiras.
Foto destaque: Internet