Afirmar negando ou negar afirmando?

Por
Alcivam Paulo de Oliveira*
Em 14.05.2021
“De ladrões mulatos
E outros quase brancos
Tratados como pretos
Só pra mostrar aos outros quase pretos
E são quase todos pretos
Como é que pretos, pobres e mulatos
E quase brancos, quase pretos de tão pobres são tratados”
HAITI – Caetano Veloso e Gilberto Gil
Eu também, gosto muito de propagandas, daquelas que mexem com a cabeça da gente e marcam nossas vidas. O povo que é jovem há tanto tempo quanto eu, deve lembrar da propaganda do primeiro sutiã ou da caderneta de poupança do banco econômico: cuidado saci, olha a onça!! Tem algumas mais recentes como uma das motos Honda em que uma pessoa vai abrindo o vidro do carro em movimento e se projetando para fora: “isso é seu corpo desejando uma Honda”. Demais! Há até as estrelas da propaganda, como Washington Olivetto, que ganhou uma música de Jorge Benjor: “WBrasil”.
Apesar dessa admiração pelo gênio criativo da publicidade, sabemos de seus objetivos e de seu efeito. Quando fiz 15 anos caí numa dessas. Havia a oferta do dia da loja Mesbla (sei, faz muito tempo!), apresentada em horário nobre na TV. Na véspera de meu aniversário de 15 anos apareceu uma câmera fotográfica, uma imagem perfeita na TV, por um preço que mamãe poderia pagar. Foi meu presente de aniversário. Quando comprei, descobri que o filme era mais caro que aquela caixa de plástico com um obturador… propaganda enganosa.
Mas, qual não é enganosa? Qual propaganda não busca vender qualidades que o produto não tem? A cerveja, por exemplo, não vem acompanhada da festa que aparece na TV, nem fala da ressaca; não existe remédio para estrias; complexo vitamínico é ilusão e ninguém fica magro e saudável da noite para o dia. Não precisa lembrar que Estados totalitários (ou não) têm na propaganda sua principal arma.
Nas ciências da educação, chama-se isso de educação em sentido amplo: a propaganda busca configurar o humano. No caso, configurar seus desejos, produzir necessidades artificiais, estabelecer valores, e assim por diante. Quem não conhece o termo “família margarina”? A família padrão dos homens de bem.
Some-se isso ao poder da televisão e de todas as mídias e temos um vetor de formação, isto é, de educação em sentido amplo, aquela que é feita para divertir, provocar consumo, mas termina educando.
Falo isso para dizer que ando meio espantado, para não dizer perplexo, com o enegrecimento da publicidade no Brasil. Apesar da propaganda brasileira com brancos ainda ser predominante, estão denegrindo a publicidade (Sim, uso aqui o termo em seu sentido denotativo, só para lembrar seu sentido conotativo, aplicado por muita gente, que dele não se apercebe),
Propaganda de Banco, de Lojas, de Margarina, de Carro; propaganda de remédio, de bens consumidos pela classe B e outras os negros vêm aparecendo com outras roupas, assumindo papeis de classe superior. A propaganda do Carrefour para o Dia das Mães é exemplar.
Parece que isso começou após a última grande onda de antirracismo nos EUA, depois do assassinato de George Floyd, que se espalhou pelo mundo e, em seguida, pelo assassinato de João Alberto no Carrefour, em Porto Alegre. Estouraram movimentos contra o racismo estrutural!
Minha perplexidade é, sendo a propaganda sempre dirigida ao público consumidor determinado (cervejas para homens, por isso tem que ter mulher pelada; carros para classe média, futebol para homens etc.) – público este delimitado pelo poder aquisitivo – das duas, uma: ou os negros enriqueceram no Brasil, ou o politicamente correto chegou ao consumo.
Porque, a proporção de negros na classe média não me parece que tenha mudado assim, tão de repente. Apesar das políticas de cotas terem conseguido certo avanço na educação superior, ainda é raro que você conheça alguém que tenha se consultado com um médico ou uma médica negra (são 18% no Brasil – https://www.bbc.com/portuguese/geral-54082443); que vejamos juízes negros em alguma reportagem. “Para se ter uma ideia, entre os quase 19 mil juízes do Brasil, não há mais que 100 mulheres negras. O último levantamento do CNJ revelou que há apenas 18% de juízes e juízas negros” (https://www10.trf2.jus.br/portal/iniciativa-de-juiza-que-integra-observatorio-do-cnj-e-finalista-de-premio-de-liderancas-negras/). Na iniciativa privada, então, “… na liderança das 500 maiores empresas brasileiras somente 4,7% são negros, e quando fazemos o recorte pelo gênero, apenas 0,4% são negras” (https://epocanegocios.globo.com/colunas/Diversifique-se/noticia/2020/07/imagine-se-nas-500-maiores-empresas-brasileiras-50-ceos-fossem-mulheres-negras.html).
Na outra ponta vamos encontrar o inverso. Os brancos ganham 56,6% a mais que os negros (em 2012 eram 57, 3%) (https://economia.uol.com.br/noticias/estadao-conteudo/2020/07/20/abismo-economico-entre-brancos-e-negros-persiste.htm), enquanto o desemprego é 71% maior entre negros que entre brancos (https://valor.globo.com/brasil/noticia/2020/08/28/desemprego-entre-negros-e-71percent-maior-do-que-entre-brancos-mostra-ibge.ghtml).
Qualquer indicador de diferença entre brancos e negros provocará esse escândalo: na política, na economia, até no futebol. No início era um esporte de branco, sendo denegrido com o passar do tempo. (https://www.uol.com.br/esporte/reportagens-especiais/futebol-no-brasil-e-moldado-em-racismo-estrutural/#page4). Hoje o racismo continua e não está apenas nos xingamentos das torcidas ou dentro de campo. Em 2020, a série “A” do Brasileiro tinha apenas dois técnicos negros (10%): Jair Ventura e Wanderley Luxemburgo.
Então, a propaganda com negros não visa uma classe ou um grupo consumidor, economicamente é impossível!  Resta assim a segunda opção: a propaganda quer configurar consumidores politicamente corretos. Será!?
A questão me faz lembrar as discussões sobre infraestrutura, estrutura e superestrutura dos marxistas, com posicionamentos extremos como o de L. Althusser e outros mais razoáveis como o de Gramsci. Tudo se determina na organização do modo de produção material, não havendo autonomia da produção simbólica (política, educação, arte e, diria eu agora, propaganda)? Ou há autonomia da superestrutura, há ponto de haver uma contra-ideologia emergente para cada ideologia hegemônica?
A lembrança dessas discussões se dá porque vislumbro uma terceira via de resposta para a questão: trata-se de atender uma moda (também no sentido estatístico): ser antirracista é chique! Apresentar negros em papeis sociais de elite promove a marca. E a realidade? Aí, é outra coisa…

E se tentarmos uma leitura dialética dessa realidade? Aí a negação do racismo será também sua afirmação, como se quisessem apenas dizer: vejam como no Brasil os negros aprecem de outra forma na propaganda! E tome fake News. Nada de trazer dados que demonstrem o racismo estrutural, isto é, aquele racismo que está na linguagem (denegrir), na arquitetura (apartamentos com DCE), na exclusão educacional (curso para negros e cursos para brancos), nas armadilhas que até os mais atentos terminam caindo e tendo atitudes racistas, nas fotos das turmas de medicina, assim, como nas fotos que registram revoltas em presídios, continuam sendo brancas, aquelas, e pretas, estas. Na certeza de que, no Brasil, os pretos são pobres de tão pretos e os pobres são pretos de tão pobres, como dizem Caetano e Gil.

*Alcivam Paulo de Oliveira é professor.