A sociedade brasileira precisa se unir no combate à fome
Felipe Santa Cruz e Renata Gil*
Em 15.05.2021
O Brasil vivenciou nos últimos anos intensas conturbações político-institucionais que geraram desarranjos sociais diversos, além de trágicos desfechos. A pandemia, que já levou a vida de mais de 400 mil brasileiros, provoca efeitos colaterais gravíssimos, sociais e econômicos, para a nossa sociedade.
E a consequência mais sofrida da crise é a fome, o agravamento da insegurança alimentar, que já atingia 59% dos domicílios em 2020, segundo os resultados da pesquisa “Efeitos da pandemia na alimentação e na situação da segurança alimentar no Brasil”, coordenada pelo Grupo de Pesquisa Alimento para Justiça: Poder, Política e Desigualdades Alimentares na Bioeconomia, com sede na Universidade Livre de Berlim.
O Brasil havia deixado o Mapa da Fome da Organização das Nações Unidas (ONU) em 2014, superando um atraso estrutural secular, às custas de esforços duramente empreendidos por governantes e por representantes da sociedade civil. O regresso a esse vergonhoso quadro nos coloca como desafio central, como sociedade, vencer as duas pandemias — a da Covid-19 e a que deixa milhões de brasileiros sem ter o que comer.
Imersos em disputas dispersoras de atenção e energia, deixamos de garantir os mais basilares direitos do cidadão. Ou é possível prover a “dignidade da pessoa humana” — fundamento cravado já no artigo 1º, inciso 3º, da Constituição Federal — e, ao mesmo tempo, deixá-la com fome?
A alimentação é um direito social inscrito no artigo 6º da Lei Maior, ao lado da educação, da saúde, do trabalho, da moradia, do transporte, do lazer e da segurança. Ela também figura no inciso 4º do artigo 7º, em meio aos direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, e no inciso 7º do artigo 208, que trata do dever do Estado com a educação. Tais dispositivos bastam para evidenciar a inconstitucionalidade da fome.
Todavia, a Carta Magna não para por aí. A organização do “abastecimento alimentar” consta do inciso 8º do artigo 23 como competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios. No artigo 227, o direito à alimentação desponta como obrigação da família, da sociedade e do Estado para com crianças, adolescentes e jovens, “com absoluta prioridade”. Posto isso, sobrevém, então, a pergunta: por que temos aceitado — calados, inertes e passivos — o reflorescimento da fome?
Por acaso, estamos sofrendo de um transtorno coletivo que nos impede de enxergar a realidade? Para não atribuir tamanho desrespeito à Constituição e à vida a uma deliberação torpe, vamos creditá-lo à crise político-institucional ora vigente — e à inação irrestrita dela derivado. Descruzemos os braços, pois. Precisamos dar de comer a quem tem fome.
Não é por outra razão que a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) e a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) unem-se em apoio à campanha Brasil sem Fome, da Ação da Cidadania, que desde 1993 já entregou o equivalente a 225 milhões de pratos de comida para famílias vitimadas pela fome.
Enquanto não retornam as políticas públicas eficazes contra a extrema pobreza e de garantia da segurança alimentar dos brasileiros, é urgente que a sociedade civil amplie a solidariedade para assegurar condições de sobrevivência mínimas às camadas vulneráveis da população.
Participe, doe já, não podemos esperar. A urgência e a pressa — já dizia Betinho — caminham de mãos dadas com a fome.
*Felipe Santa Cruz é presidente nacional da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB)
*Renata Gil é juíza e presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB).
Artigo publicado originalmente no portal da Revista Consultor Jurídico.
Este texto não reflete necessariamente a opinião do blog Falou e Disse.
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