Contente, triste e preocupado

Por

Fernando Silva*

Em 15.05.2021

Os três adjetivos pularam freneticamente e simultaneamente, na mente e no coração, ao receber a primeira dose da vacina contra a Covid – 19. Contente por ter conseguido a primeira dose e não tomado. Tomaria ou beberia se fosse um copo com água, suco, taças com vinho ou canecas com cerveja. Geladíssimas. Por falar em contente, lembro-me de uma piada contada por Andréa Galdino. Uma adolescente comprou 10 laranjas na feira e na volta para casa achou mais 05 laranjas. A adolescente ficou com? Eu respondi com 15 laranjas. Absolutamente, errado. A menina ficou contente. Assim fiquei com a agulhada no braço esquerdo, sem reação alguma. Nem de longe virei jacaré ou qualquer outra coisa estranha.

Para virar jacaré é preciso ser agulhado no lado direito do corpo? Não acredito. Mas, irei testar na segunda furada. Preciso esperar 90 dias e, segundo Bruno, meu filho, será uma espécie de presente para o Dia dos Pais. Manterei o uso de máscara (cobrindo totalmente o nariz e a boca) e álcool em gel. E o distanciamento e isolamento, além da higiene pessoal, dos alimentos e das roupas.

É inadmissível minimizar ou abandonar qualquer cuidado. Deixo isso para quem é negacionista, defensor da liberdade individual como um direito humano superior aos demais. Tem milhões de pessoas passando fome, em extrema pobreza, sem moradia, saneamento básico e o escambau. É inadmissível hierarquizar os direitos. Aliás, no capitalismo a hierarquização de direitos não se aplica aos ricos, a classe dominante e nem aos detentores dos meios de produção. Sobre os cuidados sanitários, carrego uma curiosidade para descobrir o local de venda das máscaras que muitas pessoas usam no braço, no queixo (deixando a boca e o nariz descobertos) e em outras partes inusitadas. Será que protege contra a Covid-19? A ciência diz que não. Fico com ela.

Apreciei a dose da AstraZeneca pela soma da idade com comorbidade, a danada da diabetes com a qual convivo e carrego há quase três décadas. Conviver com a dita doença é uma chatice e traz limitações. Matuto originário lá das bandas do meio rural de Agrestina, sou degustador das  comidas derivadas de milho. E do próprio amarelinho para fazer canjica, pamonha, mungunzá, xerém, bolo, pipoca e comer cozido ou assado. Se não houvesse restrições da ciência, transformaria um pacote de flocão em cuscuz e jogaria boca adentro. Calma, não seria de uma única vez. O cuscuz fazia parte da minha alimentação cotidiana até ser diagnosticado diabético. Alternativa, mudar os hábitos comestíveis. Ingiro o delicioso alimento no máximo duas vezes por semana, preferencialmente no café da manhã. Um flocão com 500g agora dura semanas. O bicho é bom com ovos, queijo, bode ou galinha – guisada ou assada – charque, carne de sol, sardinha. E com o que que você imaginar e gostar. O cuscuz é bom até com cuscuz. E não estou exagerando.

A comorbidade em tempos de pandemia da Covid–19 é ter a sensação permanente de haver uma arma de fogo apontada para você e pronta para disparar e atingir uma parte fatal do corpo. Haja paciência. Às vezes fico lembrando de um dos gritos das torcidas organizadas quando se revoltam contra um jogador do time adversário, juiz ou mesmo integrantes das torcidas adversárias. Quem esteve num estádio de futebol certamente ouviu milhares de torcedores gritando: – Hu, vai morrer; hu, vai morrer; hu vai morrer… Demora minutos. É de extremo mal gosto. Assustador.

Ficar contente só com a primeira dose é insuficiente. Tem muita gente querida que vai demorar a receber uma picada. Lembro de Mirella; do meu irmão mais velho, Manuel; das minhas irmãs mais novas, Cristina, Jacilene e Bruna; dos meus filhos Bruno e João Fernando. Aliás, por conta da pandemia congelei o aniversário do JF de 2020. Só para vocês entenderem: quis comemorar no recente dia 02 de março, os seus 18 anos. O cabra corrigiu: – Pai, são duas décadas.

E mais, tem uma porção de familiares que não receberam nenhuma dose por não ter idade e, felizmente, nenhuma comorbidade. Ocorre que não somente familiares. Tem amigos, amigas e milhões de pessoas no Brasil e bilhões no mundo que esperam sua vez. É triste e preocupante. Muitos países pobres vão depender da solidariedade comercial (é possível?) de outros países que dominam o capitalismo mundial. Aliás, tem notícias de que turistas podem receber doses em determinadas localidades dos Estados Unidos, numa demonstração de que a busca pelo bem comum e humanitário planetário não é prioridade. Não é direito o direito de ser egoísta. Qual escolha: egoísmo ou ética individual? A ética coletiva. Vacina para todas as pessoas. É urgente!

Compreendo a lógica do plano de vacinação para grupos prioritários. Compreendo, porém, tenho dificuldades em aceitar passivamente. O danado é perceber que a luta de determinados segmentos buscando ser parte dos grupos prioritários não encontra ressonância na quantidade de vacinas produzidas. Tem sido recorrente a paralisação na vacinação em estados e municípios pela falta do desejado líquido que aumenta a imunidade. A vacina protege. Estou do lado daquelas pessoas e da ciência que não alimentam tratamentos sem comprovação científica.

A falta de harmonia entre as autoridades governamentais brasileiras (Federal, Estados, Distrito Federal e Municípios) e no mundo, tem consequências. Muitas vezes os sinais na comunicação e nas atitudes são trocados. Salvo engano, com exceção de Araraquara (SP), não tivemos tranca tudo em nenhum outro lugar brasileiro. O que tem acontecido são limitações para funcionamento para alguns setores, associado a restrições de horários para funcionamento.

Há tristeza com mais de 432 mil mortes por Covid–19 no Brasil. É mais do que a população completa de Olinda (PE). E com a permanência do extermínio de jovens negros, do feminicídio, das crianças e professoras assassinadas numa creche em Santa Catarina. Com quase três dezenas de pessoas assassinadas em Jacarezinho, no Rio de Janeiro. E o que dizer de uma senhora que, caminhando pelas ruas de Olinda, morreu eletrocutada? Qual a explicação para tamanha brutalidade? Seria descaso? Não! É a necropolítica tão bem definida por Achille Mbembe.

Como não ficar triste e preocupado com mais de 14 milhões de desempregados. No modelo capitalista a concentração da riqueza só aumenta. Não é aceitável. Discordo profundamente daquelas pessoas que dizem que sempre foi assim. Tem pessoas que justificam dizendo que é assim por obra do Divino. Seria um castigo de Deus?  Não! O Deus que acredito não é perverso.

Mas é possível enxergar a luz no final do túnel? Sim, manter a capacidade de esperançar. Em qual túnel devemos caminhar e lutar para ter a oportunidade de acender a luz no final? Na política. Muitas pessoas não acreditam, desqualificam ou nunca acreditaram na política. Outras desistiram. Sou matuto teimoso. Não vou desistir. Vamos lutar! Superar as adversidades e as desigualdades. A política não deve ser desprezada e nem criminalizada. A CPI da Covid–19 precisa ter a sensatez de ir fundo nas responsabilizações, seja de quem for. Aliás, é estranho escutar ou ler que a referida CPI não deve politizar o debate. Como assim? Uma CPI no Legislativo, composto por representantes de diferentes partidos, tem a obrigação de colocar a política na direção das políticas públicas sociais e econômicas para a garantia de todos os direitos.

Não é possível ficar contente com uma única dose e nem a felicidade será alcançada com a segunda. Continuarei comendo milho e seus derivados, com os estudos e nas lutas para superar o neoliberalismo nas dimensões política, econômica e cultural. Estou com Nora Merlin quando diz que “o neoliberalismo não é possível sem essa colonização, que responde pela obediência inconsciente”. Que a “liberdade individual é uma armadilha do sistema, porque nada se faz sozinho” e “o calcanhar de Aquiles do neoliberalismo é justamente a política, por isso a demonizam tanto, vinculam-na à corrupção, à violência. “A saída – enfatiza Nora Merlin – só pode ser política, é a organização da sociedade, porque os ideólogos neoliberais sabem que nesse campo da disputa e reflexão de ideias eles não têm nada a dizer.”[2]

*Fernando Silva é mestrando em Educação, Culturas e Identidades. Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE)/Fundação Joaquim Nabuco (FUNDAJ). Escreve ocasionalmente, aos sábados. jfnando.silva@gmail.com

[2] Disponível em: https://dialogosdosul.operamundi.uol.com.br/cultura/68480/ilusao-neoliberal-de-independencia-contribui-para-servidao-jamais-vista-diz-psicanalista