Das cotas à paridade na política: lições da América Latina para o Brasil
Juliana Romão*
Em 20.05.2021
A implementação das cotas eleitorais de gênero deve ser intransigente na meta de atingir a paridade política, favorecendo a inclusão de mulheres diversas, suas agendas e perspectivas, na esfera pública. Não é uma obviedade. Como dispositivo de ação afirmativa capaz de fortalecer a representação feminina no espaço político, uma espécie de “via rápida” de reparação e redistribuição das condições de disputa, as cotas se confirmam necessárias e efetivas como ponto de partida, mas exigem fôlego sincronizado a outros dispositivos legais, políticos e institucionais para verdadeiramente alterar o quadro formal e simbólico do exercício do poder.
É o que demonstram teoria e prática de três décadas de experiências na América Latina, que o Brasil parece observar de longe, enquanto segura a lanterna em quase todos os índices de participação política feminina no bloco e fora dele. Quando não orientadas a promover uma mudança cultural, de sentido, que favoreça a equidade de gênero e raça na política e demais espaços de poder, as reformas são estéreis, funcionam como simulacro estratégico: programadas para não funcionar e funcionando para conter.
Visualizemos: o parlamento federal brasileiro tem hoje o maior percentual de representação feminina da história: ínfimos 15%, isso 25 anos após a implantação da lei que instituiu as cotas eleitorais em 1995 (aplicada nas eleições municipais de 1996). É a metade da projeção de 30% de reserva de candidaturas determinada pela legislação atual. Dito de outra forma: nestas duas décadas e meia, uma nova geração de mulheres nasceu, cresceu e tornou-se candidata/cidadã/eleitora enquanto o incremento na representação passou de 5% a 15%. Em 2021, o sistema de cotas brasileiro ainda é frágil ao ponto de endossar um parlamento 85% masculino e negligenciar uma incidência concreta de inclusão racial.
As más línguas, a ignorância e o machismo repetem prontas-respostas. Tem aquela rudimentar, do mimimi, que auto-evidencia a ausência de argumento; e frases como “as mulheres não querem estar na política”, uma antiga fake news usada para validar a exclusão e desestimular mudanças. São estereótipos que sobrepesam a já difícil carreira política feminina.
Para efeitos de comparação e desmonte da falácia, alguns números: a Argentina, primeiro país a implantar o regime de cotas eleitorais de gênero na América Latina, partiu com legislação de 30% de candidatas em 1991 e, de estreia, elegeu 38% de mulheres, atingindo em 2017 a paridade. O México inaugurou em 1996 a cota de 30% de candidatas e chegou ao equilíbrio em 2014, tendo em 2019 aprovado nova reforma constitucional para aplicar a paridade nos três níveis de governo e nos três poderes. Honduras equalizou o gênero no parlamento em 2012, depois da legislação de cotas criada em 2000. A Costa Rica estreou em 1999 impondo a maior porcentagem do bloco, 40%, e dez anos depois atingiu a igualdade. Na AL o debate não é mais sobre cotas, mas o refinamento da paridade.
Febre das cotas
Entre 1990 e 2014 um total de 16 países latino-americanos criaram leis favoráveis à condição competitiva das mulheres políticas, determinando o cumprimento de percentual mínimo de candidaturas ou de assentos. Foi uma profusão que elevou a temperatura e fez a média de legisladoras nacionais no bloco passar de 9% para 25% no período, tendo a Bolívia puxado a média para cima, e o Brasil para baixo [1].
Duas iniciativas estimularam esse efeito de contágio: a precursora “Ley de Copos” da Argentina (1991), fruto da forte pressão do movimento de mulheres no país. Os partidos foram obrigados a incluir o mínimo de 30% delas nas listas eleitorais, com punição aos descumpridores. Em 2017, o Congresso aprovou a lei de paridade de gênero em âmbitos de representação política e incluiu a alternância de gênero na lista – aumentando as chances de ingresso – entre outras garantias de equidade. O segundo impulso foi a Conferência Mundial da Mulher (Beijim, 1995), marco de conquistas femininas no plano internacional e forte influência na alteração da perspectiva de justiça político- eleitoral na democracia.
As experiências das reformas não foram lineares, muito menos sem tensões. Seus efeitos variaram, obviamente, de acordo com o formato e nível de exigência legal, das características dos sistemas eleitorais vigentes (lista fechada x lista aberta, etc), da cultura partidária, além dos contextos social e cultural de cada país.
Sistemas políticos favoráveis
Passadas as décadas hoje sabe-se que não é qualquer combinação ou formato legal que modifica a distribuição de poder e de espaço. Há características específicas que convertem a política numa “cota forte”, capaz de pressionar pela paridade e avançar à transversalidade (nas três instâncias e nos três poderes). Falando da América Latina, as pesquisadoras Freidenberg e Lajas García [2] listam algumas: sistema eleitoral favorável ao gênero; vontade das elites políticas; debate social amplo; organismos eleitorais comprometidos com a legalidade das exigências de gênero; mecanismos que contribuam com as mulheres candidatas; e um movimento de mulheres ativo e vigilante da aplicação das regras.
O excelente seminário Participação Política das Mulheres e Cotas no Brasil (ONU Mulheres/UnB/FolhaSP) realizado em abril também indicou caminhos para fortalecer a ação afirmativa no cenário brasileiro: enfrentar a violência política contra as mulheres (candidatas, filiadas e parlamentares, além das ativistas e jornalistas) com debate social e medidas legislativas; criar oportunidades concretas de carreiras políticas femininas nos partidos; estipular medidas de transparência partidária; estimular o uso qualificado do 5% do fundo partidário; ampliar a atuação fiscalizadora do TSE; optar pela lista fechada com alternância de gênero; distinguir recursos específicos para apoiar eleições de menor porte (onde mulheres poderiam ser mais beneficiadas); definir teto de gastos distintos entre homens e entre mulheres (já que há desigualdades profundas de condições de autofinanciamento e captação externa de recursos); aplicar sansões e prêmios aos partidos que se provarem paritários; construir perspectivas interseccionais de incremento de mulheres garantindo as representações de raça e classe.
Mulheres em movimento
No Brasil e na América Latina o movimento de mulheres cumpre um papel fundamental de pressão por mudanças. As feministas têm representado a força social mais intensa e constante de incidência por direitos políticos femininos, luta que tornou possível a criação da lei brasileira de cotas (1995) e seus aperfeiçoamentos em 2009, 2014, 2015, 2018, 2019 e 2020. Destaques à primeira cassação de chapa por fraude eleitoral com candidatura fictícia de mulheres, à obrigatoriedade do preenchimento mínimo de candidatas, com igual percentual de tempo de TV e de financiamento, além da recente exigência da proporcionalidade de raça na distribuição dos recursos do Fundo Eleitoral.
A superação dos obstáculos que as mulheres enfrentam na política, no entanto, é ainda mais complexa e ultrapassa a importantíssima regulação eleitoral já listada. São barreiras multidimensionais derivadas das desigualdades estruturais que aumentam a sobrecarga feminina, reduzindo substancialmente sua disponibilidade de tempo, de recursos, e de estímulo, cenário agravado pelos estereótipos que as acompanham, pelo racismo e pelas situações de assédio e violência política que vivenciam.
Tendo a paridade como pressuposto para o desenvolvimento da democracia, os consensos regionais de Quito (2007) e de Brasília (2010) ratificaram compromissos para superar o desafio de acompanhar as cotas e a paridade com medidas que promovam a corresponsabilidade em âmbito familiar e doméstico, o exercício pleno dos direitos sexuais e reprodutivos e a possibilidade de promoção de uma vida livre de violências [3]. Estamos falando de emancipação e a presença ampla, qualificada e competitiva na política vai gerar uma mudança simbólica em efeito dominó, alterando positivamente o imaginário das mulheres diversas em todos os espaços (mídia, economia, escola, praça, dentro de casa).
Partidos políticos, o principal obstáculo
É unânime: a baixa democratização interna dos partidos é um dos maiores entraves para a democratização do sistema político. As estruturas partidárias são pouco ou nada transparentes, sem mecanismos de controle externo – institucional, de eleitoras/res, filiadas/dos e entre partidos; e possuem baixíssima presença feminina nas instâncias decisórias e com reais poderes de decisão. Principal “porteiro” do recrutamento e valorização de candidaturas, as siglas tendem a ambientar uma estrutura hostil às mulheres, especialmente as negras, LGBTs, periféricas, indígenas, com deficiência, e à diversidade como um todo.
Nas realidades de muitos países latino-americanos, as elites partidárias reagiram às cotas com interpretações minimalistas e burocráticas dos dispositivos, com medidas de “última hora”; designação de nomes femininos para as praças mais longínquas ou eleitoralmente mais difíceis, distribuição tardia, desigual, autoritária e ilegal dos recursos públicos, além de práticas sexistas e discriminatórias, incluindo a desleal eterna promessa de apoio futuro.
Os partidos são necessários à democracia e sua autonomia precisa ser assegurada como valor democrático fundamental, no entanto, a liberdade organizativa não pode ser confundida com autorização para burlar a lei, travar a diversidade e sustentar critérios seletivos e excludentes, à revelia das leis e das demandas sociais.
Igualmente importante é valorizar os recentes esforços por mudanças, como a atuação mais intensa das setoriais de mulheres, iniciativas de paridade voluntária nas instâncias de poder e uma pequena descentralização de decisões sobre distribuição de recursos. Ações pontuais, mas que podem frutificar.
Sistemas políticos favoráveis e os mandatos de posição
Pesquisas e estudos mostram que o sistema de representação proporcional de lista fechada, mais do que os majoritários, seguidos dos sistemas mistos, são os mais favoráveis à seleção e eleição de mulheres (Norris e Lovenduski, 1995, Álvares, 2008, Sacchet, 2015) [4], especialmente quando combinados com uma cota forte, distribuição proporcional de recursos e controle da Justiça Eleitoral, além da cláusula do mandato de posição.
Os mandatos de posição são regras que estipulam a “posição” de candidaturas femininas no cumprimento do percentual de cotas, exigindo que estejam no topo da lista, não no final, onde normalmente são alocadas. No sistema de lista fechada, o dispositivo força o partido ordenar as candidatas de cima para baixo (em alternância de gênero), aumentando ostensivamente as chances de vitória eleitoral. As listas abertas, como no Brasil, também viabilizam o incremento de gênero, mas exigem firmeza no cumprimento dos marcos legais.
Novas propostas em debate
A Comissão Especial da reforma eleitoral da Câmara das Deputadas e dos Deputados debaterá diversos projetos, entre eles a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 134/2015, cuja teor pode gerar retrocessos na jornada da emancipação política. A PEC estabelece cota de acentos para mulheres nas três legislaturas subsequentes à promulgação da emenda: 10% na primeira, 12% na segunda e 16% na terceira.
São números baixos até para o histórico brasileiro de sub-representação. Significa projetar ao futuro o patamar atual (15%): muitas cidades e até o Congresso Nacional poderiam amargar a redução de eleitas, entre outras consequências negativas. Abaixo de 30% – quando se forma a massa crítica, mínimo capaz de gerar condição interna de disputa e agendamento – não há consistência. Se o debate é pra valer, então queremos escalonar de 30% a 50%.
Relatora da comissão, a deputada Renata Abreu (Pode-SP), ela própria autora do PL 2996/19 que desfigura o sentido das cotas propondo que as vagas fiquem vazias caso não preenchidas (assemelhado ao PL 4213/20 de Carolina de Toni – PSL), terá o desafio de conter os acirramentos provocados pela proposta de introduzir o sistema eleitoral majoritário para Câmara, o chamado “distritão”, que elege as candidaturas mais votadas, independentemente do partido. Debatido também em 2017, é considerado por especialistas a pior alternativa para a democracia, por fragmentar os partidos, encarecer as campanhas, e reduzir a representatividade e a renovação parlamentar, já que será mais vantajoso para nomes conhecidos e poderosas máquinas partidárias. Sem mandato de posição, vai na contramão da equidade.
Outros projetos incidem na distribuição dos Fundos Eleitoral e Partidário, com regras distributivas correspondentes às quantidades de representantes eleitos e de votos por partido, computando-se em dobro os votos de candidaturas femininas: PL5004/19(Margarete Coelho- PP/PI) e PL 4340/19 (Celina Leão PP/DF). A duplicata do voto é um recurso bem intencionado, mas infla a realidade e tende a deturpar regras importantes do sistema. Há também o PL1685/21 (Tabata Amaral – PDT/SP), que propõe um bônus financeiro pelos votos das candidatas. As siglas com votação maior que a média nacional, proporcionalmente, teriam 10% a mais de financiamento, e as que não atingissem o índice receberiam menos recursos. O PL exige discussão, mas pode ser um caminho para incentivar os partidos a trabalharem pela competitividade das candidatas.
Também tramita, já com aprovação da Comissão da Mulher, Projeto de Lei Complementar (35/19 de Sâmia Bonfim – PSOL/SP e Marcelo Freixo -PSOL/RJ e 109/19 de Gleise Hoffmann -PT/PR) que institui a alternância das vagas nos poderes legislativos entre homens e mulheres. A proposta vislumbra a paridade e talvez por isso mesmo enfrente mais resistências na tramitação. Pelo texto, os partidos políticos terão direito a tantas vagas quanto o respectivo quociente partidário indicar, na ordem da votação nominal das candidaturas, observada a alternância de gênero.
Todos os projetos e debates exigem nossa atenção, tanto quanto a ausência de propostas e estudos focados na redução das desigualdades de raça e classe, igualmente estruturadoras da sociedade e determinantes nas disputas eleitorais.
2022 vem aí
Não se pode delegar a definição das regras somente a quem se beneficiará delas. O debate social amplo é requisito para a aprovação de reformas que verdadeiramente qualifiquem o sistema eleitoral rumo à equidade tanto no exercício do poder quanto no imaginário social. A pressão junto ao Tribunal Superior Eleitoral, ao Congresso e aos partidos, para que exerçam cada um seu papel nesta jornada, virá da descarga elétrica democratizante dos movimentos, academia e organizações civis.
A América Latina é nossa casa, aprendamos com ela! É mais do que tempo de amplificar esse debate, levando-o do bastidor às casas, conversas e ações cotidianas. Política é coisa muito nossa.
*Juliana Romão é jornalista, mestra em comunicação pela Universidade de Brasília (UnB), estuda a inclusão de gênero na linguagem e a presença da mulher na política, é membra da PartidA e co-criadora do projeto Meu Voto Será Feminista. Email: julianagromao@gmail.com
Artigo publicado originalmente no portal de Congresso Em Foco.
Este texto não reflete necessariamente a opinião do blog Falou e Disse.
Foto destaque: Erick Mota / Congresso em Foco – Dia das Mulheres em Brasília
[4] NORRIS, Pipa ee LOVENDUSKI, Joni. (1995), Political Recruitment: Gender, Race and Class in the British Parliament. Cambridge, Cambridge University Press
Excelente artigo. Um tema muito relevante que precisa mesmo ser exposto, nos mulheres ainda precisamos avançar muito na participação política, a luta é árdua, mas não impossível.