Novas chacinas, velhas razões: a relativização da dignidade humana
Laura Mocarzel*
Em 29.05.2021
A chacina ocorrida na comunidade do Jacarezinho, no Rio de Janeiro, resultou em ao menos 28 mortes (e contando). Tal número gerou ampla revolta em alguns setores da sociedade, mas não em outros, que não só o aceitam com naturalidade como aplaudem a contagem dos corpos.
Apesar das diversas manifestações de repúdio à chacina, muitas pessoas passaram a defendê-la sob o argumento de que os jovens assassinados seriam criminosos e, portanto, tinham de morrer mesmo. A Polícia Civil, seguindo a mesma linha, justificou o massacre afirmando que os jovens eram todos investigados por tráfico de drogas.
Vídeos dos jovens mortos portando armas de fogo dias antes da chacina circularam pelas redes sociais. Em um dos vídeos, vê-se a mãe de um deles dançando com um fuzil na mão em certa ocasião e, após a chacina, surge a mesma mãe pedindo justiça pela morte do filho, como a mostrar uma contradição em sua manifestação. Eis alguns comentários extraídos da página do Instagram do jornal Estadão, em matéria que noticiou o ocorrido:
“Agora não tem mesmo eles morreram essa história tá igual a senhora dançando com as armas e o colete nas mãos e depois pedindo justiça pelo filho morto”;
“Ei estadão…para com tua graça..kkkkk parabéns a polícia”;
“Dois terços dos mortos em Jacarezinho tem ação penal no TJRJ”.
Em contrapartida, veículos de comunicação publicaram matérias contendo o esclarecimento de que alguns dos jovens assassinados, em verdade, não possuíam quaisquer antecedentes criminais [1].
Mas, afinal, o suposto fato de os jovens serem criminosos é apto a justificar 28 mortes? Em outras palavras, “bandido bom é bandido morto” e “direitos humanos só para humanos direitos”? As fichas criminais dos jovens, amplamente divulgadas pela imprensa, possuem algum tipo de relevância no caso concreto?
Para todas as indagações, a resposta é não.
Mesmo se os jovens assassinados efetivamente fossem criminosos ou suspeitos, parece que o argumento de quem defende a atuação da polícia reduz os jovens assassinados a uma identidade única: a de “bandido”. Seguindo essa linha de raciocínio, se o jovem era um criminoso, não poderia ser nada além disso.
Um ser humano — que também era filho, irmão, amigo ou marido de outra pessoa — fica reduzido à condição de criminoso e, em decorrência dessa extrema simplificação, parte da sociedade não é capaz sequer de lamentar a atuação brutal da polícia e respeitar o luto daqueles que possuíam vínculos com os jovens.
Vale recordar aqui o caso de Suzy, mulher trans no cárcere, que, em um dia, recebeu um gesto de afeto do médico Drauzio Varella durante o programa “Fantástico” e, no outro, quando descobriram os crimes que a levaram até lá, foi massacrada pela opinião pública, como se não fosse digna da compaixão alheia, perdendo até mesmo sua identidade de gênero — jornalistas passaram a chamá-la de Rafael, seu nome de nascença.
Tal fenômeno não é restrito ao âmbito penal e pode ser verificado até nas situações mais triviais do dia a dia. Não é incomum que um sujeito tenha sua identidade reduzida a um fato ou uma característica que — justa ou injustamente — lhe é atribuída. O que é injusto, e até impreciso, é reduzi-lo somente a isso por estigmas e preconceitos.
De acordo com o sociólogo Stuart Hall, hoje entendemos que o sujeito pós-moderno não tem identidade fixa, mas assume diferente identidades em diferentes momentos da vida (Hall, 2006, p. 10). A identidade é uma “celebração móvel”, continuamente transformada em relação às formas pelas as quais as pessoas são representadas nos sistemas culturais que as rodeiam (Hall, 2006, p.10) [2].
Em outras palavras: o ser humano não é uma coisa só. É complexo, às vezes faz o bem, às vezes o mal, mas em geral faz um pouco dos dois. Mas fazer algo, por pior que seja, não é o mesmo que ser esse algo. É por isso que a tendência no Brasil e no mundo é por um Direito Penal do fato, no que o fundamento do injusto penal é algo objetivo, e não mais uma qualidade intrínseca do autor, com o que se evita a criação de estigmas. Pode parecer óbvio, mas tanto é assim que a redação do artigo 121 do Código Penal é “matar alguém”, e não “ser um assassino”.
Pouco importa se uma das vítimas foi encontrada sentada em uma cadeira de bar e, muito provavelmente, sem representar qualquer perigo iminente naquele momento [3]. Se aquele homem era um criminoso, na cabeça de quem saúda a polícia nessa situação, tudo é possível.
Além de o discurso que defende a ação policial em Jacarezinho incorrer em uma grave redução identitária de suas vítimas, o fato de elas serem “criminosas” (fato que, frise-se, não foi comprovado), não a justifica moralmente. Ao contrário, revela um lado ainda pior do discurso que a ampara.
Parece que, no Brasil, parte das pessoas considera intuitivamente que os direitos fundamentais são algo que se concede ou retira à pessoa exclusivamente por merecimento (por exemplo: não sou um criminoso e, portanto, tenho direito à vida, dignidade, devido processo legal etc.).
Contudo, esquecem tais pessoas que os direitos fundamentais são inerentes ao ser humano — seja ele um criminoso declarado ou o papa. Ou seja, direitos humanos para humanos — e nada mais.
Tais jovens só “perderiam” seu direito à vida na hipótese muito restrita da legítima defesa própria ou de terceiro, isto é, quando para salvar a si mesmo ou a outro o policial não tivesse alternativa senão matar.
No caso da chacina do Jacarezinho, mesmo que fosse empiricamente comprovado que os jovens assassinados eram extremamente perigosos para o bem-estar social e que sua morte traria grande benefício à sociedade, a atitude da polícia ainda seria reprovável segundo um argumento deontológico, antiutilitarista, tal como formulado pelo professor Luís Greco no famoso caso da bomba-relógio, no qual discorre sobre a legitimidade do uso de tortura em situações excepcionais.
Em sua conclusão, o autor deixa claro que “a nossa tradição se baseia — contrariamente à regra da decadência — na idéia de que existe algo como uma dignidade inalienável e direitos humanos inalienáveis, dignidade e direitos que não podem ser negados nem ao pior dos criminosos, e que o indivíduo — contrariamente à regra dos custos — não está nem à disposição da utilidade do Estado, nem da dos demais cidadãos” [4].
Se os discursos por trás do “caso Jacarezinho” despertam alguma contradição, é na fala daqueles que aplaudem a brutalidade policial e, mais do que isso, defendem que os jovens assassinados eram criminosos e “colheram o que plantaram”.
O fato é que se a chacina tivesse ocorrido na Zona Sul do Rio de Janeiro, e envolvesse algum amigo e/ou conhecido daqueles que hoje parabenizam a polícia, o discurso seria bem diferente: o maior garantista é aquele que sofre na pele uma injustiça no sistema penal, o que é cotidiano para alguns e extremamente raro para outros.
É sintomático que a total ausência de respeito à dignidade humana seja verificada majoritariamente — para não dizer totalmente — quando estamos diante de pessoas marginalizadas e, em sua maioria, negros. No caso da chacina do Jacarezinho, o nome das vítimas sequer foi divulgado pela mídia especializada.
De acordo com matéria veiculada no portal Notícia Preta, cinco dos homens mortos foram identificados no boletim médico como “Homem Negro”, “Homem Negro II”, “Homem Negro III”, “Homem Pardo I” e “Homem Pardo II” [5].
Não existem “operações policiais” com esse nível de violência e mortalidade quando a finalidade é coibir crimes cometidos por pessoas brancas e ricas. Digo ainda que, na hipótese de virem a existir, a investigação dos policiais envolvidos seria minuciosa e a revolta social seria decisiva.
Nos tempos atuais, o respeito à dignidade humana está intrinsecamente ligado ao modo com que a sociedade enxerga cada um. No caso da chacina do Jacarezinho, os supostos crimes cometidos pelas vítimas serviram e vão continuar servindo como carta branca apta a legitimar o terror policial.
É preciso discutir seriamente a responsabilização dos agentes de segurança pública e do próprio Estado em casos assim. É preciso disputar a narrativa que prevalecerá quando a pólvora baixar. Carandiru, Osasco, Candelária e, agora, Jacarezinho são histórias que precisam ser contadas e recontadas até que parem de se repetir.
[1] https://oglobo.globo.com/rio/oab-diz-que-sete-mortos-no-jacarezinho-nao-tinham-antecedentes-criminais-25011508; Acesso em 17.5.2021, 20h36.
[2] HALL, Stuart. Identidades Culturais na Pós-Modernidade. 11. ed. Tradução de Tomaz Tadeu da Silva; Guacira Lopes Louro. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.
[3] https://extra.globo.com/casos-de-policia/mortes-no-jacarezinho-policiais-disseram-ter-encontrado-homem-baleado-sentado-em-cadeira-com-mao-na-boca-25009036.html, Acesso em 17.5.2021, 20h42.
[4] GRECO, Luís. As regras por trás da exceção — Reflexões sobre a Tortura nos chamados “Casos de Bomba-Relógio. R. Jurídica, Curitiba, n. 23, temática n. 7, p. 229-264, 2009
[5] https://noticiapreta.com.br/vitimas-da-chacina-do-jacarezinho-sao-identificados-como-homem-negro-ii-e-iii-em-boletim-medico/, Acesso em 17.5.2021, 20h52.
*Laura Mocarzel é advogada júnior na área de Contencioso Cível Estratégico da Lobo & De Rizzo Sociedade de Advogados.
Artigo publicado originalmente no portal da Revista Consultor Jurídico.
Este texto não reflete necessariamente a opinião do blog Falou e Disse.
Foto destaque: dw.com