Lázaro: o juízo final
Denise Assis*
Em 30.06.2021
Não, não vou falar sobre Lázaro Barbosa de Sousa. Da mesma maneira que não quis acompanhar com detalhes a espetacularização que se formou em torno de sua captura.
Eu me recuso a reproduzir, aqui, comentários em torno dos 38 tiros desfechados sobre o seu corpo, como se fosse necessário matar alguém 38 vezes. Às vezes penso que cada tiro representa para o policial uma espécie de assinatura, algo como um carimbo, em que eles se sentem pagando uma fatura e recebendo de volta um recibo de participação no ato. O prometido foi cumprido e, portanto, merece ter algo concreto como prova. Aquele buraco no corpo, ali, é meu. Eu que fiz.
Não vou discutir quem foi Lázaro. Tampouco vou julgar se merecia ou não o desfecho que teve, altamente previsível. Quem não sabia que ao ser encontrado ele seria perfurado por inúmeros disparos? Foi esta a política de segurança eleita em 2018. A do “excludente de ilicitude”, a política de 60 cartuchos para cada atirador. Ao final a comemoração: “CPF Cancelado!”
Não vou repetir tudo o que foi alimentado em torno dele, as fantasias sobre o “demônio”, a queda pela “magia”, as práticas ligadas ao candomblé, que motivaram verdadeiras devassas, seguidas de atos de vandalismo e desrespeito às casas de santo pelos arredores de Goiás.
Não vou pormenorizar a busca do fim da violência cometida por Lázaro suplantada pela violência brutal de um corpo arrastado e jogado no rabecão, como se um dia não tivesse, ele, saído da barriga de uma mãe, que a distância haverá de chorá-lo como só choram as mães, não importa que rumo tomou na vida o rebento que um dia ela pariu.
Não vou aliviar Lázaro. Aos olhos dos códigos sociais Lázaro mereceu o fim que teve. Quem haverá de lamentar a sua morte? A ex-mulher, com quem desejou se encontrar, mesmo sabendo dos riscos? A ex-sogra, que não impediria o encontro, por medo ou por cumplicidade com a filha?
Não haveremos de chorar Lázaro. O que aconselho, no entanto, é que vejam o filme “Juízo”, de Maria Augusta Ramos. Nele, Guta mostra a cena de uma juíza cheia de joias, que nega ao menino à sua frente, a oportunidade que tanto o seu auxiliar, quanto o promotor concederam. “Não. Ele precisa passar mais um tempo no Padre Severino”.
A câmera de Guta vai lá, na instituição que os “acolhe”, mostrar o contraste entre o anel de ouro que a juíza exibe e os compartimentos onde dormem esses meninos, com o chão alagado, as camas sem colchonetes, as paredes sem cor, o tempo gasto sem nenhum acesso a livros ou atividades em que possam dar asas à imaginação ou descarregar a energia, os hormônios que adolescência faz ferver. O filme não exala o cheiro daquele ambiente, mas pode-se presumir.
Guta volta ao fórum, onde uma adolescente de rosto angelical, esguia, suave, mas de lábios cerrados e expressão endurecida, recusa a liberdade concedida no julgamento, para estupor da juíza e desespero da mãe, presente à audiência. Nenhum dos presentes entende, como alguém pode preferir a prisão a voltar para casa?
Difícil para aqueles senhores entender que sua negativa é apenas um grito desesperado para que a ouçam. Ela quer ser percebida nos seus conflitos, nas suas angústias. Quando um deles se digna a olhar para ela, do alto do seu espanto, a lhe perguntar por que ela recusa a liberdade, o que, enfim, a aflige? Aí, sim, a jovem abre uma fresta no seu coração. Ela pode falar de si, ainda que de forma monossilábica. Ouvida, ela topa ser posta em liberdade.
O spoiler é para ligar Lázaro, que com os seus conhecimentos sobre matas, rios, grutas, poderia ter sido um guia turístico, um guarda florestal, um ecólogo (se houvesse Estado), mas morreu atravessado pelas balas do Estado. O Estado que abandona, que espreme esses jovens para a beirada da vida suportável, depois vai lá e o elimina. Ou, se o enlouquece, se o leva a distúrbios psíquicos, não o trata. Mata, porque gado a gente mata, mas com gente é diferente. Lázaro, aos olhos do Brasil que opera na violência, não é gente. É um CPF cancelado. O mesmo Estado que abandona, elimina. E comemora.
*Denise Assis – Jornalista. Passou pelos principais veículos, tais como: O Globo; Jornal do Brasil; Veja; Isto É e o Dia. Ex-assessora-pesquisadora da Comissão Nacional da Verdade e CEV-Rio, autora de “Propaganda e cinema a serviço do golpe – 1962/1964” e “Imaculada”, membro do Jornalistas pela Democracia.
Artigo publicado originalmente no portal Jornalistas Pela Democracia.
Este texto não reflete necessariamente a opinião do blog Falou e Disse.
Foto destaque: Lázaro Barbosa e operação policial (Reprodução)