Nós somos crianças

Por

Rômulo Rossy Leal Carvalho*

Em 08.07.2021

(in memory of Michael Joseph Jackson)
28 de janeiro de 1985. Ele chegava à porta do estúdio da gravadora Columbia, em Beverly Hills, Califórnia, com uma tradicional jaqueta com detalhes dourados que, além do corpo, parecia lhe agasalhar a alma. Era uma noite fria nos Estados Unidos da América, mas a intenção com a qual gravariam aquela canção era calorosa, e o que a acalorava, sobremaneira, era a filantropia de jovens cantores – ao menos no espírito.
O primeiro a chegar, reiteramos, por volta das 18h, era Michael Joseph Jackson (1958-2009). O cantor, que àquela altura contava 26 anos de vida, e de carreira 15, com óculos escuros  – já tendo, após um incidente no palco, perdido parte dos fios capilares -, era o primeiro a ensaiar a música que escreveu ao lado do amigo Lionel Ritchie.
O produtor da música, Quincy Jones, integrando o movimento “USA for Africa”, que resultou no disco de título homônimo, lançado em 07 de março de 1985, logo percebia que Michael não veio ao mundo para ser amador. De tão profissional que era, já conseguira, em pouco tempo de gravação, atingir com perfeição as notas e, em seguida, abrilhantar com sua voz de veludo – fruto, alega-se, de uma castração química -, a inesquecível “We Are The World”.
Antes desta, a consagração já se estampava no mosaico de sua trajetória como dançarino, compositor, cantor e estilista. O menino de ouro, nascido em 29 de agosto de 1958, em Indiana, nos Estados Unidos, negro, e para sempre negro, teve uma vida conturbada, uma infância que lhe foi dolorosa, mesmo dizendo que sempre e para sempre seu lar era o palco.
Jackson Five Internet
Jackson, nada tímido, que cantava e dançava como poucos na história da música afro-americana, junto com os irmãos a princípio, no grupo Jackson Five, teve seus dias de fama emaranhados a contristações indeléveis, que o acompanharam para o resto da sua existência.
Rigor, disciplina, trabalho, depressão. Parece uma sina dos artistas renomados, uma configuração impreterível, um mecanismo que os revigora e avaliza a candente constatação de que, fora dos palcos, a vida humana é muito diferente, que a “deitadinha”, da memorável “Smooth Criminal”, pode levar a quedas das quais os joelhos ficam irrecuperáveis, e que o moonwalk, de Bilie Jean, é verossímil. Andamos muito para trás.
Uma junção de acontecimentos e de fama rendeu a Michael Jackson uma polivalência no que tange às interpretações que sobrevieram sobre o astro que vendeu mais de 300 milhões de discos ao longo de sua carreira, que teve a soma de cerca de 39 anos. Quase a sua vida inteira, por assim dizer. Michael talvez não tivesse tempo sequer para usufruir da noção do que era seu próprio sucesso. Isso porque, alguns dos prêmios que colecionou em um quarto especial em sua mansão em Los Angeles, nem mesmo eram por ele notados.
Embrulhado, quase anoréxico, com o vitiligo total – doença degenerativa responsável pela perda da melanina – sim, Michael Jackson não fez “reversão” de pele, até porque é impossível. Michael Jackson não se “tornou branco”. Ele ficou sem melanina. É diferente. Apesar das incontáveis cirurgias plásticas às quais se submeteu, mesmo só dizendo ter passado por duas ou três – o que não se sustenta pelas mudanças no rosto -, sabe-se que o caso do seu vitiligo era real.
Por outro lado, o astro do pop afro-americano esteve durante boa parte da sua vida insatisfeito, quiçá veementemente descontente com sua aparência. Nunca se agradou de si. O que o entretia, porém, era o palco, e neste, jamais decepcionou a quem, maravilhado, o via dançar de uma forma totalmente colossal.
Desditoso, mas cônscio de seu papel no mundo, Michael Jackson não parava. Quando folheasse uma revista inteira, podia-se esperar que tudo ali fosse por ele comprado. Sempre com os empresários à sua disposição, inclusive para lhe arranjar uma esposa, como aconteceu com Maria das Graças Meneghel, Xuxa. A, no Brasil, “Rainha dos Baixinhos”, disse que só era fã da estrela, mas não apaixonada por ele. O casamento com Lisa Marie Presley, ao ver dela, não foi o que se podia esperar. Ela disse que gostaria de ter o apoiado mais quando ele precisou. Já, ao ver de dona Remy, mineira que foi sua empregada por alguns anos – pelo fato de ser Testemunha de Jeová -, dizia que os dois viviam correndo pela casa, brincando.
Dócil, crédulo, ingênuo, assim dona Remy o classificava. Em sua estada em Los Angeles, contou que Michael praticamente não se alimentava. Frango e no máximo algumas frutas. Sopa. E ela, muitas vezes para o fazer se alimentar, experimentava primeiro a comida. “Você não é o rei? Pois então: eu como primeiro, depois você”. Ele sorria, e conseguia engolir uma coisa ou outra.
Um fato curioso é que, segundo Remy, ele acreditava facilmente no que lhe dissessem. E temia sempre, por conta de patologias intestinais e do vitiligo, comer qualquer coisa. Acreditava, até, que se tornaria uma aberração, caso se alimentasse de algo “inapropriado”.
Paris Jackson e Michael Joseph Jackson Jr, frutos do casamento com Debbie Rowe, assistente de dermatologia, com quem esteve junto de 1997 a 1999. Ela, sempre no anonimato. Depois, nascia, em 2002, Prince Michael Jackson II, “Blanket”, que até hoje tem sua mãe “desconhecida” pela grande mídia. Michael afortunou seus três filhos. Seus. Tanto é que, até hoje, a guarda dos seus filhos está com Katherine Jackson, sua mãe.
Traumas, discórdias, alegrias. Michel Jackson se deparou com um mundo e um mar que, às ondas turvas e nas curvas do seu ser, afogou-lhe a ponto de deixá-lo completa e tristemente insone. Michael se refugiou durante muitos anos no que chamava de seu “leitinho da noite”: propofol, uma substância anestésica, em injeção, que foi a responsável durante uma longa temporada por seu curto descanso, e que sacramentou perenemente seu repouso eterno.
O então “amigo da noite” propofol, em junho de 2009, teria sido a causa de seu infarto, lavrada em seu atestado de óbito, que resultou na prisão de seu médico particular, Dr. Conrad Murray, que recebia um milhão de dólares mensais.
Michel tinha partido com algumas feridas e com outras que lhe machucaram a vida inteira, na alma. As acusações, a fama estrondosa, os holofotes excessivos lhe renderam dores e alegrias. “This Is It” era seu projeto para aqueles dias. Estava nos ensaios. Gostaria de recuperar-se financeira e publicamente depois de uns anos de afastamento. Já não era o mesmo. Aliás, nunca foi o mesmo. Era o que Stuart Hall chama de sujeito “pós-moderno”, que não tem uma identidade fixa, diferente do iluminista e do sociológico.
À porta dos estúdios, em 1985, na Califórnia, mais outros 45 cantores, dos quais 21 dividiriam a canção We Are The World, começavam a chegar. Ensaiavam a voz com o piano, depois com a intercalação dos outros instrumentos. Lionel Ritchie, Cyndi Lauper, Kenny Rogers, Kim Carnes, Diana Ross, Paul Simon, Stevie Wonder, Steve Perry, Dionne Warwick, Willie Nelson, Tina Turner, Al Jarreau, Bruce Springsteen, Lewis, Bob Dylan, entre outros, ensaiaram das 22h do dia 28 de janeiro até às 10h, 12h do dia seguinte, 29 de janeiro de 1985. Abriram o ano com chave de ouro, numa clássica reunião de arte, talento, brilhantismo, afinação e competência. Os ensaios, hoje disponíveis na internet, são uma aula de arranjo vocal, de canto, de divisão de vozes, em uma época que era um microfone para um trio. Se um errasse, era regravação para os três. O produto final foi esplêndido, elogiável, eterno.
Assim como pareciam os dilemas de Michael, o astro se fizera marcante e perene não só pelo talento irretocável, mas pelo olhar sempre sensível às carências do mundo em que vivia. Por detrás das câmeras existia um Michael que só a família conheceu, que só os empregados testemunharam, que só os poucos amigos enxergaram.
Assim, ao ouvir suas canções, revejo um Michael que li nas revistas, que busquei nas músicas, que tratei de procurar entender nas entrevistas. Um Michael que ficará, por um bom tempo, na memória de quem cantou pela paz no mundo e dizendo, aos quatro cantos deste, que nós somos crianças. A criança externa, que feneceu em Michael, não conseguiu ressuscitar quando ele quis. Ele nunca foi o mesmo. Mas a criança interior, aquela que foi soprada em sua canção, nunca morreu dentro dele. Michael, nós somos crianças! Michael, we are the children!
*Rômulo Rossy Leal Carvalho é licenciado em História, escritor e membro da Academia de Letras do Vale do Riachão(PI).

Foto destaque: Internet