A hora do Congresso

Por
Ayrton Maciel*
Em 21.06.2020
O Brasil não pode passar da hora. O país precisa impor, consolidar e legitimar – sobre quaisquer contraditório – o poder civil. Não há postulação contrária que não seja arbitrária, antidemocrática e inevitavelmente efêmera. Portanto, sujeita aos castigos mais duros das leis ou de uma massa enfurecida. A democracia representativa e o Estado Democrático de Direito, com todas as usas imperfeições, máculas e vícios, são as mais amplas e justas formas de dirimir as diferenças. Violentar esses caminhos é cavar sepulturas. Durará um dia, uns anos, mas nunca um século nem um perdão.
O Congresso Brasileiro precisa assumir integralmente o seu poder. É a representação mais autêntica do povo. Por sua legitimidade, está pavimentado o Estado Democrático. As Forças Armadas são o seu braço de defesa, um apêndice apolítico igualmente responsável pela integridade territorial.  Está na hora do Congresso – um poder desarmado, porém representativo – impor o poder que emana do povo. Não pode passar da hora de deixar claro que o poder é civil e que cabe aos militares unicamente respeitar e acatar.
Ameaças contínuas de altas patentes beligerantes, na ativa e na reserva, revelam um inconsequente sentimento de desprezo pela democracia, uma aparente  rejeição pela miscigenação brasileira e uma inconcebível posição política. É obrigação das Forças Armadas, em qualquer país democrático, ficarem isentas das contendas políticas. O mundo mudou, os países em desenvolvimento optaram pela democracia e enquadraram seus militares nas regras do regime e do sistema vigente. O Parlamento e o Judiciário asseguram essa supremacia do poder civil. O Brasil, porém, não o fez com a redemocratização nem nestes 32 anos de democracia.
A Constituição de 1988 é a mais democrática da República. Apesar das liberdades, direitos e deveres, há os que buscam brechas para respaldar seus arroubos autoritários. É hora do Congresso dizer que da Carta não cabem dúvidas. Está na hora do Congresso abrir a discussão sobre as Forças Armadas, sobre o seu submissor enquadramento, sobre a reformulação de seus estatutos, seus programas e currículos de formação, sobre a modernização do seu papel  e a profissionalização de suas tropas. Tolerar que as instituições militares sofram influência política é negligenciar sobre o dever do seu papel imparcial.
Está na hora, igualmente, do Congresso abrir discussão sobre as Polícias Militares. Polícia tem de ser polícia, parte ostensiva, parte de investigação, como nas democracias mais sólidas. Não tem de ser militar. Policial não tem de pensar que é formado para a guerra. O povo não é o seu subjetivo inimigo. É hora de reformular as polícias, inspirando-se em exemplos de países democráticos. Não é possível sindicância para quem comete crime, substituindo o inquérito criminal. A lei é para todos. Farda não pode garantir estabilidade, mas, sim, deve garantir punição a quem a desonra.
O momento do Brasil é irracional. Pior: revela impunidade. Policiais militares afrontam direitos e demonstram opções e preconceitos em suas abordagens, não raro sacrificando vidas. O alinhamento político, que manifestações de rua recentes têm flagrado, é o passo mais célere para a perda da credibilidade e para reforçar a imagem de que “a polícia é o perigo”. Esse risco não afeta as corporações, porque os interesses corporativos prevalecem sobre o interesse da coletiva, que é o da segurança social e da proteção contra maus policiais.
A ‘opção Bolsonaro’ dos policiais brasileiros baseia-se na expectativa de benefícios e privilégios para as corporações, mesmo que em detrimento dos brasileiros em geral. Nem os milhares de mortos pela pandemia do Covid-19, a afetação da economia e o futuro dos milhões de desempregados são capazes de sensibilizar para a imprudência do momento. O ato mais recente é revelador: Jair Bolsonaro assina parecer da Advocacia Geral da União (AGU) reconhecendo a paridade e integralidade dos proventos, na aposentadoria, para  policiais federais, rodoviários federais, civis e penais. Menos valem as dores da população.
O mais grave, porém, são as ameaças de insubordinação dos policiais militares contra os governadores (o motim da PM do Ceará, no início deste ano, não teve nada de espontâneo, aleatório e de coincidência). Em manifestações recentes de bolsonaristas, em São Paulo, policiais militares escalados para a segurança bateram continência para manifestantes com a bandeira nacional. Dirão que bateram continência para a bandeira do Brasil e não para os manifestantes. Quem acredita?
Surge, agora, a informação de que PMs estão enviando mensagens cifradas a governadores, sinalizando que em um impasse político “entre eles e Bolsonaro, ficam com o presidente”. Dê-se o nome que quiser: insubordinação, quebra da hierarquia constitucional, motim, terrorismo, crime contra o Estado democrático, envolvimento político. Cabe aos governadores responderem da forma mais desconciliadora, de cima a baixo: aquele que se insubordinar, perde a farda. Sem detrimento das demais previsões na Constituição e nas leis.
*Ayrton Maciel é jornalista. Escreve aos domingos.
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