Na ONU, Apib e Cimi denunciam medidas anti-indígenas e questionam governo brasileiro
Adi Spezia e Tiago Miotto/Ascom Cimi
Em 15.07.2021
Apelo foi feito na mesma semana em que o Brasil foi citado por risco de atrocidade contra povos indígenas; governo brasileiro tentou fazer tréplica, mas não foi atendido
Em declaração conjunta durante a 14ª Sessão do Mecanismo de Peritos sobre Direitos dos Povos Indígenas da ONU (EMRIP), a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) denunciaram nesta quarta (14) medidas do governo brasileiro e do Congresso Nacional que atacam os direitos dos povos indígenas no Brasil, como o Projeto de Lei (PL) 490/2007, que na prática inviabiliza demarcações de terras indígenas, e a tese do marco temporal.
Na oportunidade, as organizações também questionaram a manifestação do governo brasileiro, que havia defendido, em sua fala, uma normativa recentemente imposta pelo governo brasileiro e que é amplamente questionada por organizações indígenas, indigenistas, socioambientais e até pelo Ministério Público Federal (MPF) por enfraquecer os direitos constitucionais indígenas.
O evento tem como objetivo ouvir os povos indígenas e suas organizações, nesta edição devido a pandemia foi realizado em formato virtual e discutiu sobre a autodeterminação dos povos e o direito das crianças indígenas. O EMRIP é um mecanismo único, onde todos seus membros são povos indígenas. “É um mecanismo muito importante para a comunidade indígena mundial, liderado pelos povos indígenas”, explica Paulo Lugon Arantes, assessor internacional do Cimi.
“O presidente Bolsonaro tem uma agenda claramente anti-indígena, o que levou a assessora da ONU pela prevenção do genocídio incluir o Brasil no Mapa de Atrocidades do Mundo”
No tempo estipulado à Apib e ao Cimi, Arantes, falando em nome das organizações, destacou a gravidade do marco temporal e dos mais de 30 outros projetos em tramitação no Congresso brasileiro que violam o direito à livre determinação dos povos originários. O PL 490, recentemente aprovado na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados, foi destacado como uma das principais ameaças aos direitos indígenas hoje.
“O marco temporal é desastroso porque deixará uma marca incalculável de exclusão e marginalização de povos que ainda não tiveram seus territórios demarcados ou que foram expulsos de seus territórios tradicionais”, destacou Paulo.
As organizações ainda denunciaram a agenda anti-indígena do governo brasileiro, o que levou a Conselheira Especial da ONU para a Prevenção do Genocídio, Wairimu Nderitu, manifestar preocupação inédita com a situação os povos indígenas no Brasil.
“O presidente Bolsonaro tem uma agenda claramente anti-indígena, o que levou a assessora da ONU pela prevenção do genocídio incluir o Brasil no Mapa de Atrocidades do Mundo”, afirmou o assessor, em nome da Apib e do Cimi.
“Essa normativa [IN 01/2021] é uma tentativa de contornar as garantias constitucionais, como o usufruto exclusivo dos territórios por seus povos e, consequentemente, sua autodeterminação e autonomia”
Normativa conjunta
Em sua manifestação na sessão com o EMRIP, o governo brasileiro defendeu a Instrução Normativa Conjunta 01/2021, publicada pela Fundação Nacional do Índio (Funai) e pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) em fevereiro.
Segundo o representante do Itamaraty na sessão, a normativa teria garantido aos povos indígenas “autonomia para definir seus próprios procedimentos em relação ao licenciamento ambiental de projetos econômicos dentro de suas terras, quando o empreendedor é uma organização indígena, dentro dos limites da legislação nacional”.
“Povos indígenas podem escolher desenvolver atividades geradoras de lucro em suas terras. Tais iniciativas de fortalecimento econômico contam com total apoio do governo federal”, ressaltou o governo brasileiro.
A representação do Brasil fez questão de salientar, ainda, “a produção sustentável de grãos” realizada em três terras indígenas no Centro Oeste do país, seguindo o modelo produtivo do agronegócio, com monocultivos, uso de sementes transgênicas e agrotóxicos.
O fato de que milhares de comunidades e famílias indígenas produzem os mais variados alimentos de forma autônoma, orgânica e coletiva não foi mencionado pelo representante do Brasil.
A Apib e o Cimi, em seguida, questionaram a posição defendida pelo governo brasileiro. “Rechaçamos veementemente a intervenção do representante do Brasil quando menciona que a IN 01 do Ibama e da Funai é uma manifestação da autonomia dos povos indígenas do Brasil”, salientaram.
“Essa regulamentação não flexibiliza, mas enfraquece o licenciamento ambiental no Brasil. É uma tentativa de contornar as garantias constitucionais, como o usufruto exclusivo dos territórios por seus povos e, consequentemente, sua autodeterminação e autonomia. Essa normativa cria um procedimento de licença ambiental que nega o Consentimento Livre Prévio e Informado aos povos indígenas do Brasil”, afirmou Arantes, falando em nome das duas organizações.
A IN 01/2021 permite que “organizações mistas” de indígenas e não indígenas possam explorar economicamente as terras tradicionais, o que é vedado pela Constituição Federal. A participação de indígenas nestas organizações – que não necessariamente são representativas do povo ou da comunidade que vive naquele território – é utilizada pelo governo federal para justificar a medida.
“Basta que garimpeiros, madeireiros e fazendeiros aliciem alguns indígenas, convencendo-os a criar uma associação mista e, a partir de então, não haverá nenhum tipo de contenção ou limite”, avalia, em artigo, o coordenador do Cimi Regional Sul, Roberto Liebgott.
“Esse mecanismo levará ao acirramento de conflitos, colocando a vida dos indígenas em sério risco”, apontou o Cimi, em nota, à época da publicação da medida.
Para a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), a IN 01/2021 dá “amparo legal para a invasão, nesses territórios, de estradas, fazendas, hidrelétricas, monoculturas e outros projetos que colocam em extremo risco os recursos naturais, a biodiversidade, a segurança e os modos de vida próprios dos povos indígenas”.
Para o MPF, a normativa conjunta da Funai e do Ibama viola a Constituição Federal e afronta os direitos constitucionais dos povos originários.
Apib e Cimi solicitaram, ao final de sua fala, que em seu trabalho de assessoria ao Estado brasileiro o mecanismo de peritos da ONU “leve em consideração esta norma, tendo em conta os graves riscos que ela impõe”.
“Outras delegações de países que participavam do espaço receberam críticas, mas deixaram os povos indígenas falar”
Tréplica negada
Após a declaração conjunta, a representação do governo brasileiro pediu “direito de resposta”, pelo fato do país ter sido citado. A resposta, que seria uma tréplica, foi negada pela secretaria do EMRIP, que respondeu não haver direito de resposta frente ao mecanismo. “Os integrantes do EMRIP são os únicos membros do mecanismo e todos os demais são observadores”, explicou a secretaria.
“Essa prática não encoraja a participação de Estados-membros nas sessões do mecanismo e é autoritária”, retrucou a representação brasileira, que ainda tentou rebater os argumentos da Apib e do Cimi por meio de mensagens de texto.
“Estados nacionais, ONGs, todos os demais são observadores, por isso não existe direito de resposta”, explica Arantes. “O Brasil foi a única delegação que fez isso. Outras delegações de países que participavam do espaço receberam críticas, mas deixaram os povos indígenas falar”.
Veja, abaixo, a íntegra da manifestação conjunta da Apib e do Cimi:
14ª Sessão do Mecanismo de Peritos sobre Direitos dos Povos Indígenas
Consulta Regional, 14 de julho de 2021
Declaração Conjunta:
Articulação dos Povos Indígenas do Brasil – APIB
Conselho Indigenista Missionário – CIMI
Agradecemos ao Mecanismo pelo estudo sobre os direitos dos povos indígenas e o direito à sua autodeterminação.
Apoiamos o marco principal do informe, o qual indica que o direito à sua determinação é a base legal para as relações entre povos indígenas e Estados, o que foi amplamente acolhido pelo Direito Internacional dos Direitos Humanos. Na verdade, o direito à autodeterminação de povos indígenas têm raízes internacionalistas, com os membros da Escola Peninsular da Paz, no século XVI, antes da hecatombe da colonização das Américas.
Acreditamos que o direito à autodeterminação inscrito no Artigo 3 da Declaração têm uma relação estreita com todos os outros direitos neste instrumento. Neste momento, gostaríamos de focar no direito ao território.
Na experiência brasileira, a Escola Peninsular teve repercussões na Legislação Colonial Portuguesa, principalmente na Teoria do Indigenato, a qual garantia o direito originário dos povos indígenas, embora o poder colonial tenha sido responsável por várias atrocidades contra estes povos.
A teoria do Indigenato seguiu inúmeras Constituições brasileiras. A última Constituição de 1988, ao dedicar um capítulo aos povos indígenas, também reconhece o direito ancestral de seus povos originários ao território que tradicionalmente ocupam.
Porém, a equivocada tese do Marco Temporal discutida no Brasil defende que os direitos originários ao seu território por seu povo estão restritos a data da promulgação da Constituição. Esta tese é debatida no Supremo Tribunal Federal e por meio do Projeto de Lei 490.
O Marco Temporal é nefasto porque deixará um rastro incalculável de exclusão e marginalização de povos que ainda não tiveram seus territórios demarcados ou que foram expulsos de seus territórios tradicionais.
Mais de 30 outros projetos em tramitação no Congresso brasileiro violam o direito à liberdade de determinação e contrariam a recomendação mencionada no parágrafo 139 do informe.
O presidente Bolsonaro tem uma agenda claramente anti-indígena, o que levou a assessora da ONU pela prevenção do genocídio incluir o Brasil no Mapa de Atrocidades do Mundo, segundo seu último relatório.
Para concluir, rechaçamos veementemente a intervenção do representante do Brasil quando menciona que a IN 01 do IBAMA e da FUNAI é uma manifestação da autonomia dos povos indígenas do Brasil. Essa regulamentação não torna o licenciamento ambiental no Brasil mais flexível, mas o enfraquece. É uma tentativa de contornar as garantias constitucionais, como o usufruto exclusivo dos territórios por seus povos e, consequentemente, sua autodeterminação e autonomia.
Essa norma cria um procedimento de licenciamento ambiental que nega o consentimento livre prévio e informado aos povos indígenas do Brasil.
Solicitamos ao Mecanismo que, em seu trabalho de assessoria ao Estado Brasileiro, leve em consideração esta norma, tendo em conta os graves riscos que ela impõe.
Muito obrigado.
Foto destaque: Adi Spezia e Tiago Miotto, da Assessoria de Comunicação do Cimi -Manifestação dos povos indígenas contra o PL 490 em frente ao anexo 2 da Câmara dos Deputados, durante o Levante Pela Terra, em junho. Foto: Andressa Zumpano/Articulação das Pastorais do Campo