O Congresso precisa assumir o seu papel constitucional

Por
Ayrton Maciel*
Em 23.08.2021
A hora do basta não pode ser perdida. No estágio de civilização que a humanidade alcançou, é inconcebível imaginar países comandados por ditadores, sejam de direita ou de esquerda.
O Brasil chegou a uma encruzilhada: vive uma tensão entre a sociedade civil e a militar, que tem por trás um presidente inconsequente e a parcela fanática, obscurantista, negacionista e violenta dessa população. Um impasse que pode precipitar um confronto e ruptura previsíveis, mas de custo humano e social imprevisível. Inevitáveis se o presidente da República, Jair Bolsonaro, tentar um golpe contra a democracia e o Estado de Direito, recorrendo às Polícias Militares e a generais, almirantes e brigadeiros aliados, interditando o Congresso Nacional e o STF, o que representaria a sua elevação à condição de ditador. Um cenário improvável, mas não impossível, em razão do enredo ideológico extremista e saudosista de 1964 que orienta o governo. Creem que o poder são eles, as armas são a imposição da sua vontade e estão imunes a quaisquer punições.
O Congresso está perdendo a hora de uma reação. O cavalo selado não pode passar sob a negligência de deputados e senadores. Há mais de 120 pedidos de impeachment engavetados, porém há outras soluções constitucionais para o país. O Congresso precisa aplicar o seu poder  constitucional, com os parlamentares exercendo destemidamente as suas prerrogativas, as quais foram consagradas pela vontade popular. O enquadramento das Forças Armadas – como em qualquer país democrático – e das corporações policiais militares do Brasil tornou-se um pré-requisito para a estabilidade da nossa democracia. É preciso reformular os códigos e estatutos de atuação, formação e conduta, mas, é fundamental inserir na Constituição cláusulas de proteção e punição contra golpes, tentativas, subversão e ameaças aos Poderes constituídos.
É intolerável consentir as ameaças sucessivas e frequentes ao STF, ao Congresso e à sociedade civil, explicitamente sob o embuste da liberdade de expressão. As redes sociais dos seguidores militares e civis de Bolsonaro não praticam a liberdade de imprensa, mas sim a propagação de fake news e crimes contra a honra do Judiciário e do Legislativo e contra a paz social. O objetivo é nitidamente buscar a agitação social e o conflito nas ruas e armar uma falsa justificativa para um golpe em nome da “ordem social”, intervindo e fechando o STF, o Congresso e os legislativos estaduais, destituindo os governadores eleitos e os substituindo por interventores, comumente militares. O Congresso e a sociedade civil precisam dar um basta: é preciso respeitar os Poderes da República, a sua independência e a sua harmonia constitucional. Democracia é conviver entre prós e contras, aceitar perdas e ganhos, admitir concordância e discordância.
Nossos vizinhos argentinos, chilenos, uruguaios e paraguaios têm, desde suas redemocratizações, Forças Armadas compromissadas com a democracia e conscientes dos erros de uma passado recente. As punições da Justiça foram exemplares. No Brasil, há generais, coronéis e o injustificável Clube Militar que vivem a ameaçar a sociedade civil e a exaltar a ditadura de 64, seja por simples questão de soldo e provento, seja por discordarem do governo – o que se configura como perda de isenção -, seja por vislumbrarem nas nuvens a ameaça comunista. Isto existe porque a anistia de 1979 foi omissa. A Constituição de 1988 precisa ter clara as punições para as ameaças à democracia, e mais precisamente as que resultarem em violência física e perdas humanas. A perda da farda e a pena máxima de prisão devem estar na Carta como contenção eventual e como custo para as aventuras golpistas.
No Brasil democrático, assistimos a quem integra corporação armada e a quem vive armado ameaçarem os que vivem desarmados. Esse tem sido o exemplo de coragem e valentia de quem prega golpe: intimidar os Poderes desarmados e a sociedade civil. O Congresso não pode, também, passar da hora de dar um basta às Policias Militares, de deixar claro que não fazem parte das Forças Armadas do país – e que o povo não é um inimigo a ser eliminado, torturado ou perseguido, notadamente em favelas e comunidades – e que são instituições submetidas aos governos estaduais. Uma hierarquia inegociável. É preciso retirar o status de “forças auxiliares” das FFAA, abolir as fardas militares dessas corporações e expressar a tarefa exclusiva de polícias ostensivas, como são nos países desenvolvidos. Nossas PMs invadem favelas, morros e barracos intempestiva e desautorizadamente, como que ocupando um território inimigo. Essa conduta é, em parte, responsável pela mortandade violenta nas comunidades pobres do Brasil.
A hora do basta não pode ser perdida. No estágio de civilização que a humanidade alcançou, é inconcebível imaginar países comandados por ditadores, sejam de direita ou de esquerda. O Brasil é um Haiti social, mas nem por isso ou por inconsequência cabe um Papa Doc.
*Ayrton Maciel é jornalista. Trabalhou no Dario de Pernambuco, Jornal do Commercio e nas rádios Jornal, Olinda e Tamandaré. Ganhador do Prêmio Esso Regional Nordeste de 1991.
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Foto destaque: Brasil de Fato