Tributo à Professora Eunice Prudente
Isadora Brandão*
Em 26.08.2021
“… há caminhos, dentro das sutilezas do imaginário, nos quais podemos elaborar memórias que ainda virão ou escrever as cartas que já foram enviadas. Onde podemos definir a linearidade ou não de nossas histórias. A memória pode ser traiçoeira, mas também guarda a potência das escolhas. E assim, não mais deixaremos nossos álbuns esvaziados”. (Beatriz Lemos)
O genocídio negro, enquanto fenômeno multifacetado, não opera apenas por meio da eliminação física de nossos corpos. A imagem de corpos negros alvejados e inertes, tão corriqueira nos noticiários policiais, corresponde apenas à dimensão mais visível desse fenômeno. O genocídio também se consuma por meio da castração simbólica das possibilidades de elaboração de uma memória coletiva engendrada a partir da nossa experiência enquanto coletividade afro-diaspórica.
Estamos enganados se acreditarmos que essa interdição ocorreu de forma pontual e ficou atrelada a um passado remoto. Ela não se encerrou quando Ruy Barbosa, em 1890, na qualidade de Ministro da Fazenda, determinou a eliminação dos arquivos da escravidão, diminuindo as nossas chances de conhecer uma realidade histórica na qual estamos diretamente implicados.
Essa tentativa de apagamento é um processo contínuo, que se reinventa e se sofistica a todo instante. Ela também pode ser encontrada na narrativa hegemônica sobre a nação, que pressupõe que a história dos afro-brasileiros tem como ponto de partida a escravidão. Podemos constatar a persistência dessa ideologia na moderna literatura historiográfica, que insiste no uso da nomenclatura “escravos” ao invés de escravizados.
Quando não há uma preocupação em compreender como sujeitos foram tornados “escravos”, torna-se possível naturalizar o tratamento de pessoas negras como socialmente descartáveis. Dessa forma, o resgate e interpretação de nossa memória compartilhada é tarefa de ordem vital.
É o que diz, em outras palavras, o provérbio ganês “Se wo were fi na wo sankofa a yenkyi”, que significa “Não é tabu voltar para trás e recuperar o que você esqueceu (perdeu)”.
Dito isso, penso que seja nossa tarefa coletiva pavimentar os nossos caminhos rumo ao futuro lançando luz para as pedras colocadas por quem nos antecedeu, sem as quais não estaríamos de pé, tampouco seríamos capazes de projetar o devir sem reproduzir os mesmos erros do passado.
No campo jurídico, não há como edificar essa estrada com solidez sem nos apropriarmos do legado em construção da Professora Eunice Aparecida de Jesus Prudente.
O livro “Professoras negras: mulheres, acadêmicas e intelectuais”, organizado pelo Professor Dagoberto José Fonseca e recentemente publicado pela Editora Brazil Publishing resgata, por meio de um diálogo delicadamente tecido entre as Professoras Eunice Prudente, Josildeth Consorte e Petronilha Gonçalves, os principais aspectos da trajetória pessoal, profissional e intelectual de cada uma dessas três figuras emblemáticas responsáveis por formar muitos quadros da atual geração.
A mim foi atribuída a imensa responsabilidade de contribuir com um dos posfácios desta obra. Gostaria de compartilhar com vocês, nesse artigo, algumas das reflexões ali desenvolvidas, as quais dizem respeito aos ensinamentos que a vida e obra inconclusa da Professora Eunice Prudente transmitem para a nossa luta contra o racismo, o sexismo e todos os sistemas de opressão.
Causa admiração que a Professora Eunice, primeira e ainda única professora negra da Faculdade de Direito da USP, não tenha sucumbido às tentativas de descaracterização que o “pacto narcísico da branquitude” é capaz de nos impor, notadamente nesses espaços de poder historicamente vinculados à legitimação e sustentação do status quo.
É extremamente árduo sobreviver psiquicamente à afirmação cotidiana, explícita ou velada, da superioridade moral, intelectual e estética do branco e aos desdobramentos no campo das relações interpessoais dos sentimentos inconfessáveis mobilizados em pessoas brancas a partir da convivência com pessoas negras que atingem o mesmo patamar de poder que elas. Igualmente desafiador é lidar com a negação sistemática e dissimulação do racismo, ao mesmo tempo em que se observa a convergência de interesses de grupos privilegiados para produzir a discriminação racial.
Contudo, a Professora Eunice não se deixou consumir pelo racismo e nos diz, através do seu exemplo, que podemos vislumbrar caminhos alternativos a essa tecnologia de dominação, na esteira do que nossos ancestrais já demonstraram.
Ao buscar identificar os fatores que permitiram à Professora Eunice Prudente trilhar esse caminho exitoso, pude identificar redes familiares e comunitárias decisivas.
A participação dos avós da Professora Eunice na Frente Negra Brasileira, certamente contribuiu para que ela, desde cedo, desenvolvesse consciência crítica racial, algo que lhe permitiu se manter firmemente identificada e vinculada aos preceitos cosmológicos da nossa coletividade afro-diaspórica. No livro, a Professora Eunice revela extrair esses pilares filosóficos da poesia de Nelson Cavaquinho e de Cartola, da música orquestrada pelas Escolas de Samba, dos dribles arrojados que caracterizam o nosso futebol-arte.
Esse contexto familiar e comunitário também permite compreender a centralidade do tema do racismo na produção acadêmica da Professora Eunice Prudente. Em dissertação de mestrado pioneira defendida em 1982 sob o título “Preconceito racial e igualdade jurídica no Brasil”, ela sustenta a criminalização de condutas discriminatórias baseadas na raça, tese que veio a ser consagrada pela Constituição Federal de 1988. Sem dúvidas, trata-se de obra precursora do campo de estudos sobre “Direito e relações raciais” no Brasil, referência ainda atual para compreensão de como as opções políticas da intelligentsia brasileira levaram à institucionalização do racismo e ao apartheid racial latente que nos define enquanto sociedade.
De outro lado, a militância dos pais da Professora Eunice na Juventude Operária Católica (JOC) e no movimento sindical possivelmente subsidiou uma leitura crítica à resistência dos “comunistas” ao debate da condição peculiar do negro no Brasil e, consequentemente, cravou um alerta quanto às contradições da retórica emancipatória da esquerda.
Outro aspecto de relevo para compreensão dessa história, a meu ver, diz respeito ao fato de que a mãe da Professora Eunice trabalhou como empregada doméstica. Essa realidade laboral possivelmente favoreceu a construção de um ponto de vista que Patrícia Hill Collins denominou de “dupla consciência”. De um lado, ela se caracteriza pela familiarização e aprendizado dos valores e habitus das elites brancas, e, de outro, pelo investimento no projeto educacional como instrumento de ruptura com esse lugar socialmente subalternizado e de conquista de mobilidade social.
Assim, o acesso à educação de qualidade foi determinante para a trajetória exitosa da Professora Eunice e, não à toa, continua sendo uma pauta estratégica para os movimentos sociais negros em nosso país, que envidam esforços contínuos na defesa da política de cotas raciais nas Universidades.
Entretanto, a Professora Eunice não se satisfez com os ganhos particulares que essa sua trajetória excepcional lhe proporcionou. Ela tem, generosamente, dedicado a sua vida a colocar os saberes que adquiriu à serviço da sua comunidade, em um processo dialógico em que ensina ao mesmo tempo em que educa a si mesma.
Situada na zona onde as opressões de gênero, raça e classe se intersectam, a Professora Eunice construiu um caminho semelhante ao de muitas mulheres negras, estabelecendo, especialmente quando esteve à frente da Secretaria Estadual de Justiça, interlocuções valiosas com os movimentos feminista, negro e de trabalhadores.
Ela é o exemplo vivo de que a solidão estrutural, política, afetiva e epistêmica que marca as nossas vivências de mulheres negras não tem nos impedido de ocupar a vanguarda da luta por um novo modelo de sociedade em que todas as humanidades possam ser reconhecidas.
Por fim, cumpre registrar a relação da Professora Eunice com seus orientandos, pois ela vai muito além da disponibilização de referenciais teóricos, da supervisão das pesquisas e da facilitação de acesso a redes profissionais. A Professora Eunice tem exercido uma verdadeira “maternagem de mente e alma”, servindo como um porto seguro para que orientandos e orientandas possam navegar com segurança em busca de seus sonhos.
O legado em construção da Professora Eunice Prudente confere sentido à nossa luta por autodefinição e por poder, pois através de sua autêntica jornada ela tem permitido que nos ergamos uns aos outros e umas às outras contra todas as tentativas de negociação da nossa dignidade.
Isadora Brandão é Defensora Pública do Estado de São Paulo. Coordenadora do Núcleo Especializado de Defesa da Diversidade e da Igualdade Racial.
Artigo publicado originalmente no portal Justificando (Coluna Vozes Negras).
Este texto não reflete necessariamente a opinião do blog Falou e Disse.
Foto destaque: Professora Eunice Prudente (Foto: Cecília Bastos / USP Imagens)