A “mãe” de Juçaral

Por

José Ambrósio dos Santos*

Em 09.09.2021

Há uma semana, na quinta-feira 02, centenas de famílias de Juçaral, distrito localizado na zona canavieira do Cabo de Santo Agostinho(PE), reverenciaram a memória da enfermeira e missionária francesa Colette Catta, no aniversário de centenário do seu nascimento. Ela faleceu no dia 05 de novembro de 2016, aos 95 anos de idade, 42 dos quais inteiramente dedicados a salvar vidas, desde a sua chegada em 1974 à comunidade, considerada à época uma das mais carentes da cidade integrante da Região Metropolitana do Recife (RMR). Seu legado de solidariedade e amor aos pobres recebeu o reconhecimento do arcebispo de Olinda e Recife, do Fernando Saburido, que a denominou a mãede Juçaral”, na cerimônia de despedida.

Filho de Juçaral, Dom Fernando Saburido conhecia profundamente o trabalho de Colette Catta, que além de salvar muitas vidas, devolveu a esperança e despertou a consciência cidadã de uma gente até então esquecida pelo poder público e que sobrevivia basicamente do duro e penoso trabalho do plantio e corte da cana de açúcar.

“O que estamos celebrando não é uma missa de corpo presente, mas uma Missa de Ação de Graças. A vida de Colette Catta foi inteiramente de doação aos pobres. Foram 95 anos de bênçãos, de graças, dessa que é a “mãede Juçaral”, ressaltou Dom Saburido, logo no início da missa no salão paroquial da igreja de São José.

No percurso até o pequeno cemitério não houve prantos, mas as lágrimas corriam nas faces de muitos, principalmente daquelas e daqueles que eram tidos como “filhos” de Colete, além dos que se beneficiaram diretamente do trabalho de Colette Catta, que logo que chegou a Juçaral fincou raízes e construiu a comunidade Arca de Noé, que abrigava creche e escola, e mudou a realidade de crianças, jovens e adultos.

Canavieiros, donas de casa, muitos estudantes. Silêncio atencioso somente quebrado pelo celebrante, Dom Saburido, e pelos cânticos religiosos que incluíam o hino a São José, o padroeiro, composto por Colette. No final da cerimônia, todos cantaram o hino de Juçaral, outra composição de Colette. Com três estrofes e um refrão, o hino exalta a beleza natural da localidade, em contraste com a dura realidade dos canaviais. Juçaral, a chuva e o sol / O silêncio… a natureza / Mas para o trabalhador / É o inferno da cana / Que destrói toda beleza / Faz perder todo esplendor.
“Estamos nos despedindo de uma mulher que viveu uma vida santa. Colette foi só amor, humildade e fraternidade”, resumiu Tony Catta, um dos “filhos” da missionária. “As sementes por ela plantadas frutificarão”, reforçou Tony.

E as sementes plantadas por Colette foram muitas. Freira da congregação agostiniana Irmãozinhos da Assunção, que atua em praticamente todo o mundo em áreas industriais, Colette chegou a Juçaral em 1974, juntamente com duas amigas, e ficou chocada. Ela já conhecia a miséria do Nordeste através de reportagens e da peça adaptada do livro ‘Morte e Vida Severina’, de João Cabral de Melo Neto. Também conhecia nordestinos que chegavam a São Paulo fugindo da seca. Com a ajuda do padre Carlos – um belga que por ser estrangeiro lutava contra o preconceito da comunidade – instalou-se com as amigas em uma casinha onde viveu até seus últimos dias e que foi ponto de partida para a construção da comunidade Arca de Noé.

Cheia de sonhos, de idealismos e também de reflexão profunda sobre as condições de vida e de trabalho no contato com doentes, crianças da escola e dos familiares de cortadores de cana, Colette passou a integrar-se à desconfiada comunidade – era também estrangeira. Enfrentou situações bastante difíceis, mas não suficientes para assustar a quem se decidira por uma vida de doação e viveu os horrores da Segunda Guerra Mundial na Paris sitiada pelos alemães. A jovem Colette Catta chegou a passar fome fugindo e escondendo-se das tropas de Adolf Hitler.

A convivência diária e o cuidar dedicado a pobres e doentes a fizeram aceitar a guarda de dois meninos de famílias atingidas por doenças e incapacitadas para cuidar dos filhos. Foram eles Tony, que chegou com três meses, e Damião, com um ano e meio. Foi então que organizou uma pequena escola maternal na casa onde morava o padre Carlos, também na área onde mais tarde se constituiria a comunidade Arca de Noé. Em pouco tempo eram 30 crianças na escola e o local ficou pequeno.

Com a ajuda de amigos, de parentes da Europa e também de brasileiros, além da ONG francesa Lês Freres D’Esperança, uma nova escola ficou logo pronta e recebeu 60 crianças de quatro a seis anos de idade. Com o passar do tempo, Colette e outras pessoas envolvidas no projeto observaram que muitas das crianças de quatro anos não alcançavam o desenvolvimento normal para a idade e decidiram construir uma creche. Ninguém em Juçaral sabia o que era uma creche. Elas passaram a visitar as famílias de porta em porta e, em 1984, inauguraram a creche Irmãozinhos de Esperança. Ela teve no prefeito Elias Gomes um importante aliado em suas três administrações (1983/1988, 1997/2000 e 2001/2004).

“Logo passamos a perceber o despertar das mentes, da boa convivência geral e a mortalidade infantil diminuiu”, contou, em entrevista ao jornal semanário Tribuna Popular, em agosto de 2007, admitindo considerar que sem essa ação, muitas das crianças da comunidade possivelmente não teriam sobrevivido.

Ao completarem 13 e 14 anos de idade, Tony e Damião foram adotados por Colette. Tony foi estudar em Vitória de Santo Antão. Logo chegaram outros rapazes e moças que formaram a comunidade Arca de Noé. Centenas de jovens passaram pela comunidade. Dos primeiros, muitos frequentaram a escolinha. Ficavam em média dois a três anos. Eles procuravam o local para mudar de vida estudando, refletindo, orando, vivendo em comunidade, trabalhando na Arca de Noé e se preparando para o futuro.

“Dos primeiros, muitos estão formados, casados, com saúde. São hoje homens e mulheres que pensam”, exultou Colette Catta.  “Não se muda o mundo se não se muda a si mesmo”, completou, sempre exibindo um sorriso franco e alegre.

A mudança na realidade e no pensamento das centenas de “filhos” da “mãe” de Juçaral transformaram-se em uma bola de neve, como descreveu Tony. E essa bola vai crescer e crescer, segundo assegurou, minutos antes do fechamento do ataúde.
As reverências à memória de Colette Catta no dia do centenário do seu nascimento ocorreram em muitos outros lugares do Brasil e mundo afora, em especial na cidade de Nantes, oeste da França, onde nasceu no dia 02 de setembro de 1921.
Au revoir, Colette.
*José Ambrósio dos Santos é jornalista e membro da Academia Cabense de Letras.
Foto destaque: João Barbosa
NOTA DO EDITOR: A inspiradora obra de Colette Catta será contada no livro Colette Catta, a “mãe”de Juçaral, de autoria do editor deste blog, jornalista José Ambrósio dos Santos.