Democracia e racismo estrutural

Por

Helena Theodoro*

Em 18.10.2021

O racismo estrutural da sociedade brasileira induz a mídia a situar  sempre um cidadão preto  como criminoso, como fez uma jornalista  ao entrevistar Martinho da Vila, cidadão brasileiro, portador de poesia, musicalidade, identidade, sabedoria e  que traz em seu nome artístico um território que toca o coração dos cariocas: Vila Isabel. Neste bairro, onde viveu Noel Rosa, encontramos a escola de samba Unidos de Vila Isabel, situada no Boulevard 28 de setembro, dia da Lei do Ventre Livre  e que homenageará  Martinho no próximo carnaval.

Criada em 1871 por José Maria da Silva Paranhos, a Lei do Ventre Livre trazia a proposta de abolir gradualmente a escravidão no país, determinando que os filhos de escravizadas nascidos a partir daquela data seriam considerados livres. Tal proposta criou dois cenários para dar a liberdade, pois previa que a mãe ficasse com os filhos até os 8 anos. Após esta idade, até 21 anos, poderia ser entregue a uma instituição do estado com direito a uma indenização pelos anos   trabalhados  ou ficar com a mãe aos cuidados do senhor.

Martinho da Vila é um dos sambistas que mais tem lutado contra o racismo, seja em suas composições musicais, suas produções artísticas e sua literatura. Com mais de quinze livros publicados, estabeleceu uma relação de aproximação da cultura negra do Brasil com os cantares e a literatura de Angola, fazendo uma verdadeira ponte entre o Brasil e os países africanos de expressão portuguesa. Através de seu projeto Kizomba – encontro, confraternização – estabeleceu um contato da sociedade brasileira com a arte de artistas angolanos, moçambicanos  e congoleses, trazendo, também, espetáculos de teatro e dança da África do Sul, do Quenia e dos Estados Unidos. Conseguiu criar um elo profundo entre o Rio de Janeiro e Angola, apresentando na Sala Cecilia Meireles um espetáculo de música angolana: O Canto Livre de Angola. Em seus discos introduziu ritmos angolanos e moçambicanos, além de palavras em quimbundo, língua falada pelos escravizados que aqui chegaram.. Acreditando no poder da educação fez um CD com Rildo Hora intitulado  Você não me pega, dedicado ao seu filho Preto Ferreira, por acreditar que todas as crianças pretas precisam conhecer suas origens africanas, jogando capoeira, dançando jongo; se  orgulhando de seus ancestrais.

A  preocupação de Martinho com a educação brasileira é legitima. É preciso mudar as leis,  transformando a mídia, que precisará encarar seriamente a questão racial, respeitando os pensadores pretos como ele, Emicida, Muniz Sodré e muitos outros. Se faz necessário cumprir leis como a 10639/03 que determina o ensino de cultura negra nas escolas.  A educação é visceralmente política e o nosso modelo de educação tem que se estruturar em uma educação descolonizada, pautada em nosso povo. Um país como o Brasil tem como desafio reinventar uma forma própria de educação.

Fachada da Vila Isabel, que decidiu homenagear Martinho da Vila com um samba enredo. Música fala, dentre outras coisas, sobre reforma agrária. Foto: Mariana Maiara

As escolas de samba mostram um caminho com sua forma peculiar de contar histórias.  Para o carnaval de 2022 elas  refletem sobre suas tradições, como a Mocidade ao evidenciar sua preocupação com o meio ambiente  com seu enredo sobre Oxossi , o orixá das matas. que  caça e preserva a natureza.. Na Portela teremos a manutenção das tradições do samba ao falar do Baobá, árvore sagrada, que mostra  a africanidade  da comunidade preta. Já  a Grande Rio trata da capacidade  de transformação  da sociedade, mostrando o orixá EXU, responsável por comunicação e mudança. Elas sabem que a luta contra o racismo vem de longe, sendo que após 150 anos da Lei do Ventre Livre as mulheres pretas continuam sem ter liberdade para seus filhos, pois ela só é assegurada numa sociedade democrática e equânime, que aceite a diversidade e possibilite oportunidade igual para todos. Por conta disto o Salgueiro traz o enredo Resistência, evidenciando a luta pelos direitos humanos da população preta em nosso país.

A pressão dos grupos econômicos mais poderosos vem sendo exercida desde sempre, apresentando uma lógica política  de que a riqueza do país deve beneficiar quem investe e não as pessoas do povo. Assim, os mais ricos são beneficiados em detrimento da população menos favorecida, basicamente a comunidade preta, não considerada cidadã, apesar de todas as leis criadas incluindo  o 13 de maio e a Constituição de 1988.

A  Constituição de 1988  é conhecida como democrática, mas o Brasil não é uma democracia racial porque a discriminação racial e o racismo  são, ao mesmo tempo, uma prática e uma ideologia que assolam, implacavelmente, o cotidiano das pessoas negras, suas famílias e suas comunidades. . As elites e os brancos pobres não foram preparados para aceitar a mudança racial. Permanece intocada a questão da raça, da relação entre patrões e empregadas/os  e de segurança pública.

Os policiais continuam perseguindo e matando a comunidade negra, como nos anos 30.  Segundo o relatório do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESC) de 2019, intitulado A Cor da Violência: a bala não erra o alvo, nossa sociedade está organizada para usar o racismo como motor da violência. Apresentam em seu relatório números que comprovam que praticamente todos os mortos em ações policiais em cinco estados brasileiros são negros. Assim sendo, o debate de segurança pública em nossa sociedade tem de ser centrado em raça. Segundo nossa Constituição de 1988 todos são iguais perante a lei, mas verificamos que não são tão iguais assim.  Comprovamos tal desigualdade neste momento de pandemia com mais de seiscentos mil mortos, sendo os que mais adoecem e morrem os das comunidades pobres e pretas. Conceição Evaristo  em 2008, no seu Poemas de Recordação e outros momentos, esclarece:

“Os ossos de nossos antepassados

Colhem as nossas perenes lágrimas

Pelos mortos de hoje.

Os olhos de nossos antepassados,

Negras estrelas tingidas de sangue,

Elevam-se das profundezas do tempo

Cuidando de nossa dolorida memória.

A terra está coberta de valas

E a qualquer descuido de vida

A morte é certa.

A bala não erra o alvo, no escuro

Um corpo negro bambeia e dança

A certidão de óbito, os antigos sabem

Veio lavrada desde os negreiros.”