“Senta igual moça”: da cultura do estupro a violência sexual cotidiana

Por

Isabella Matosinhos e Isabela Araújo*

Em 21.10.2021

Qual o seu maior medo, em termos de violência? A resposta de cada um de nós a essa pergunta certamente irá variar a depender de nossa raça, classe social, gênero, orientação sexual e outros fatores. Se você é uma leitora mulher, provavelmente não é prentensão nossa afirmar que dentre as três primeiras situações que passam em sua cabeça para responder à pergunta está a violência sexual. Esse também é certamente um dos maiores medos de nós duas, que escrevemos este texto. E é sobre esse assunto que tratamos hoje. Nossa proposta é escrever sobre a violência sexual por meio da discussão sobre a cultura do estupro, olhando para suas raízes e para o caso Mariana Ferrer,  julgado no último dia 7.

A possibilidade de vivenciar uma situação de violência sexual paira sobre a socialização feminina quase como um destino implacável, cuja responsabilidade de evitar parece recair sobre nós, as próprias mulheres. Isso porque fomos formadas com base em uma “socialização do medo”. Assim, as recomendações de como uma menina deve agir se iniciam já na infância. Para as mulheres, a “etiqueta de bom comportamento” inclui, por exemplo, a famosa frase “sente-se como uma mocinha”. Isso indica como a recomendação de fechar as pernas é algo que marca a vida das mulheres desde a infância. Com o passar do tempo os alertas se tornam mais incisivos e somos ensinadas a jamais aceitar uma bebida oferecida por um homem sem que vejamos de onde veio. Aprendemos que não devemos andar sozinhas na rua à noite, principalmente em locais pouco movimentados. Aprendemos que, especialmente na rua à noite, usar roupas curtas é inapropriado.

O que está por trás dessas recomendações que memorizamos desde tão cedo é o conhecido ditado popular que aconselha: “toma conta da sua bezerra que meu boi tá solto”. Essa frase sintetiza muito bem a diferença entre o que é esperado do “ser homem” e “ser mulher” dentro dos papéis tradicionais de gênero que ainda buscam, de alguma forma, organizar nossa sociedade: às meninas, restrição, medo e culpabilização; aos meninos, liberdade e posse. Assim, quando falamos em violência sexual estamos lançando luz sobre uma violência que é exercida sobre a nossa forma de existir no mundo, através do corpo. Ali, na violação, se materializa a existência feminina como subserviente aos desejos dos homens.

E por mais paradoxal que possa parecer, ao mesmo tempo que uma violência sexual é sentida quase como uma certeza na vida das mulheres, ela é ao mesmo tempo tida como uma imagem fantasmagórica de um evento pontual. É como um perigo iminente, mas que só acontece em casos extremos – situações em que, em geral, perguntas sobre o quanto a mulher bebeu ou qual roupa ela usava trazem de volta a ideia, já mencionada, de que cabe às mulheres evitarem a violência. As estatísticas podem nos ajudar a dimensionar o cenário. O último Anuário Brasileiro de Segurança Pública divulgou que no Brasil, em 2020, houve 60.926 registros de violência sexual. Deste total, 44.879 eram casos de estupro de vulnerável, significando que mais de 70% das denúncias tiveram como vítimas meninas de até 14 anos de idade ou mulheres que “não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência”, nos termos do artigo 217-A do nosso Código Penal. Somente em 2019 – ano que teve cerca de 6 mil denunciais a mais em relação à 2020 – a cada 8 minutos um crime de estupro foi registrado.

Esses dados, apesar de reveladores, são apenas parte do problema. Isso porque a violência sexual não se limita ao crime de estupro. Ele é certamente o mais conhecido e aquele sobre o qual, em certa medida, há um consenso de que constitui uma violação do corpo da mulher e que, uma vez ocorrido, admite uma denúncia formal que deve acionar os órgãos da justiça criminal para que o agressor seja responsabilizado. Ainda sobre esse consenso sobre o estupro ser crime, é importante dizer o seguinte: ele acontece num nível abstrato. No caso concreto, esse consenso ainda não existe, significando que apesar de as pessoas não contestarem que estupro é crime, existe divergência sobre o que de fato é considerado como estupro. Assim, argumentações como “ah, mas isso (forçar o sexo com a pessoa com a qual estão comprometidos ou fazer sexo com uma mulher inconsciente, por exemplo) não é estupro” ainda são comumente vistas em nossa sociedade.

De todo modo, o estupro é apenas uma das formas pelas quais a violência sexual pode acontecer, não a única. Ela abarca várias outras violências. Nos termos da Organização Mundial de Saúde, constitui violência sexual “todo ato sexual, tentativa de consumar um ato sexual ou insinuações sexuais indesejadas; ou ações para comercializar ou usar de qualquer outro modo a sexualidade de uma pessoa por meio da coerção por outra pessoa, independentemente da relação desta com a vítima, em qualquer âmbito, incluindo o lar e o local de trabalho.

Ou seja, a violência sexual pode acontecer por meio de uma ação, como no caso do estupro, mas também pode se caracterizar em comentários, insinuações e qualquer forma de contato físico de teor sexual. E talvez aí resida parte do engano de que raramente uma mulher sofre violência sexual. Se não conhecemos uma mulher que foi estuprada, certamente conhecemos uma mulher que teve seu corpo tocado indevidamente ou que se sentiu constrangida e coagida por comentários sexualizantes de chefes ou colegas de trabalho. Neste sentido, no imaginário coletivo talvez seja socialmente condenável estuprar uma mulher que tenha resistido com toda sua força, mas ainda é amplamente aceito que homens constranjam mulheres em festas, para beijá-las contra sua vontade; ou que homem toquem mulheres, de propósito e sem consentimento, no transporte coletivo. Em todo caso, isso indica o que é esperado da mulher – e especificamente de seu corpo – é que sirva como objeto para o homem, independente de qual seja a vontade da mulher.

Violência sexual: por que ela acontece?

Se vamos discutir violência sexual, entendemos necessário pensar sobre os motivos pelos quais ela ocorre. A motivação, como já pontuado, vem da percepção da legítima posse e controle do corpo da mulher. Mas em que ela está fundamentada? De onde vem essa legitimação social que faz com que a violência sexual aconteça de maneiras tão plurais? Para entender o pano de fundo que envolve essa problemática, optamos por entrar no debate sobre a cultura do estupro e como ela se enraizou no Brasil.

Quando falamos em cultura do estupro estamos nos referindo a comportamentos, modos de agir e pensar que naturalizam e toleram a prática do estupro – de modo específico – e da violência sexual – de modo geral – em uma sociedade. Essa cultura se manifesta de diversas formas, desde frases corriqueiras que objetificam o corpo da mulher até a tolerância a certos comportamentos – como o de  algum conhecido que alcooliza uma mulher para ter relações sexuais -, chegando ao tratamento juridico que culpabiliza a vítima pela agressão e desconfia do que está sendo por ela narrado. A cultura do estupro se materializa em práticas sexuais violentas e não consentidas. Mas ela é mais do que isso, constituindo-se na forma de um imaginário coletivo que se ampara na ideia de que o corpo da mulher pertence ao homem, de que existe um direito do homem sobre a mulher.

No Brasil, o termo cultura do estupro se popularizou após uma adolescente de 16 anos vítima de um estupro coletivo com mais de 30 agressores ter o vídeo da sua violação amplamente divulgado nas redes sociais. Isso aconteceu em 2016. Acompanhando as imagens, pululavam comentários que não apenas naturalizavam a prática mas, mais do que isso, faziam piada sobre a agressão. Apesar da propagação do termo ter ocorrido apenas mediante essa tragédia, femininstas da década de 1970 já debatiam comportamentos que relativizavam ou encobriam as formas de violência sexual contra a mulher.

Hoje, pesquisadores da violência sexual defendem que esse tipo de comportamento extrapola o objetivo do prazer masculino, pretendendo, em primeiro lugar, impor o poder do homem a partir do domínio da vítima. Nesse sentido, o comportamento sexual estaria a serviço de necessidades não sexuais. Sob esta ótica, impossível não lembrar da novela  “Gabriela”, baseada no romance de Jorge Amado. Nela, o Coronel Jesuíno – figura perfeita de um patriarca da tradicional família brasileira – dizia à sua esposa as seguintes frases: “Hoje a noite se prepare que vou lhe usar” e “deite que vou lhe usar”. O bordão ficou rapidamente famoso, se tornou meme e foi utilizado nos mais diversos contextos de forma cômica.

Reparem: de forma cômica. A cultura do estupro permite esse tipo de interpretação de um ato que, em verdade, constitui violência sexual. E isso porque o que está representado no ato retratado na novela é o chamado estupro marital, o tipo de estupro que acontece dentro de um relacionamento afetivo, quando, por exemplo, o marido entende que é obrigação de sua esposa ter relações sexuais com ele, no momento que ele deseja, da forma como ele deseja. Nesse ponto de vista, o ato sexual não aconteceria para o prazer e satisfação de ambos e muito menos por um desejo comum, mas sim por ser dever da esposa e direito do marido. Direito este garantido não apenas pelo casamento formal mas, mais do que isso, pela legitimidade social. O fato de o bordão da novela ter viralizado a partir do humor demonstra bem essa aceitação social: nós, enquanto sociedade, ainda vemos como cômico um tipo de comportamento que é, em sua essência, violento.

Vale ressaltar que nas cenas em que o coronel utilizava do corpo de sinhazinha, a agressividade era parte do ato. Esse exemplo é bastante ilustrativo de como a cultura do estupro pode ser naturalizada e acontecer de forma sutil, porque nem o agressor se vê como alguém que está praticando um crime e nem a sociedade entende o ato como criminoso. Em alguns casos de violência contra a mulher, até mesmo a própria mulher tem dificuldades de se reconhecer como vítima e de identificar aquela situação que está vivenciando como sendo de violência. 

Não por coincidência, pesquisadoras norteamericanas, ao estudarem sobre a cultura de estupro, demonstram que a associação comumente feita entre sexualidade masculina e agressividade aproxima a relação sexual do estupro. Uma vez que os papéis de gênero, como tradicionalmente impostos, atrelam o homem à dominação e à agressividade e a mulher ao pudor e à submissão, essa relação vai ser transposta também para as relações sexuais. E é justamente nestes binômios que diversas atitudes de homens agressores são justificadas: é “normal” um homem forçar um beijo, afinal, é de sua “natureza” ser mais incisivo. Por sua vez, é normal a mulher ter que tolerar ações de cunho sexual, ainda que não as deseje, afinal, o seu “não” seria dito por puro recato e pudor. Isso evidencia como os papéis de gênero atribuidos socialmente operam legitimando e sustentando a cultura de estupro.

Especificamente sobre a realidade brasileira, é preciso também nos atentarmos para outra questão. Quando falamos sobre o corpo da mulher como meio através do qual os homens exercem poder, não podemos deixar de lado o colonialismo e a escravidão que fizeram parte da formação da sociedade brasileira. Isso faz com que nosso país carregue, desde seus primórdios, a história do estupro de mulheres escravizadas e indígenas. Não é preciso dizer que se hoje muitas violências sexuais ainda são naturalizadas, naquela época a situação era ainda mais crítica. Como as mulheres escravizadas sequer eram reconhecidas como seres humanos, mas explicitamente como propriedade dos fazendeiros, delas não se esperava nem pudor e nem recato, afinal, estas características são humanas demais. Em oposição, como propriedade, o esperado era obediência e servidão; como corpo objetificado, esperava que servissem para o que seu proprietário desejasse.

Esse tipo de lógica resultou no estupro cotidiano de mulheres indígenas e negras escravizadas a partir das mais diversas formas de violência. Ao mesmo tempo, essa realidade ajudou a construir a hipersexualização de mulheres negras que eram acusadas pelas mulheres brancas e por seus maridos de seduzirem os fazendeiros. Em consequência, a partir desse cenário é construída a noção de que existem mulheres que são ideais para o casamento e aquelas que são vistas apenas para manter relações sexuais. Enquanto as primeiras são as que mais se aproximam das expectativas dos papéis de gênero, as segundas são aquelas cujo corpos podem e devem ser utilizados a bel prazer pelos homens, são os corpos mais “estupráveis”. Não à toa, 73% das mulheres vítimas de estupro no Brasil são negras. 

Corpos estupráveis versus corpos não estupráveis: o caso Mariana Ferrer

Ao contrário do que historicamente é considerado como o tipo de corpo mais “estuprável” – o das mulheres que, independente da época em que se encontram, tem sua finalidade reduzida à sua função sexual ou que são vistas como mulheres que não se adequam ao papel de gênero que pretende que sejam belas, recatadas e do lar -, existe também a vítima “ideal” ou “nata” do crime de estupro. Reparem: no primeiro caso, o estupro seria quase que devido, afinal, a mulher, por meio de seu comportamento inadequado, estaria “incitando” o homem a violentá-la. O homem, nesse caso, estaria apenas reagindo a um modo de agir (ou de se vestir, por exemplo) da mulher. Tem a ver com o que falamos acima, sobre não haver consenso social sobre o que cabe dentro do conceito abstrato de estupro. No segundo caso, entretanto, a situação muda de cara e a mulher estuprada passa a ser considerada de fato uma vítima e o ato sexual forçado não mais um direito do homem, mas um crime por ele praticado.

Apesar de acreditarmos que, em se tratando de violência sexual, a culpa sempre é do agressor, a vítima que é socialmente considerada como “ideal” ou “nata” do crime de estupro é a única percebida como completamente inocente, em situações nas quais,  sob o olhar da sociedade, o estupro não estaria justificado, não estaria legitimado. Percebam: estamos falando que essa vítima é considerada ideal ou não sob o ponto de vista da sociedade, não do Direito, ao menos em tese. Nosso Código Penal criminaliza o estupro, ponto. Mas na prática, o que acontece é que alguns casos são socialmente vistos como mais graves e outros como menos graves, como desculpáveis. A vítima “ideal” do crime de estupro seria aquela dos casos considerados mais severos, como as crianças ou as mulheres que efetivamente lutaram contra a investida. São situações em que geralmente existe consenso social sobre o caso concreto ser considerado um estupro. A título de ilustração, seria uma situação na qual a mulher, cumprindo seu papel de gênero, comportando-se e vestindo-se de acordo com o que é tradicionalmente considerado adequado, ainda assim é estuprada. Importante frisar que, antes do ato em si, ela claramente tem que ter afirmado que não queria aquilo e lutou contra o agressor.

Acontece que são muitos os contextos de estupro no Brasil e nem sempre o cenário e a vítima se encaixam nesse tipo ideal. Isso faz com que muitas mulheres violentadas sejam desacreditadas e a situação de violência pela qual passaram deixa de ser socialmente percebida como um crime. É comum, em casos assim, que haja uma revitimização da mulher mesmo dentro do sistema de justiça. Significa que a mulher, acionando o aparato de justiça criminal em uma tentativa de responsabilizar o agressor é, ela própria, julgada por seu comportamento e suas ações no dia-a-dia. Isso acontece no intuito de mostrar que a mulher, em alguma medida, teve culpa no crime. E foi o que aconteceu no caso Mariana Ferrer, julgado no último dia 7 pelo Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJSC).

Em síntese, o caso é o seguinte: em 2018, Mariana Ferrer, com 21 anos à época, afirmou ter sido vítima de estupro perpetrado por André Aranha, então com 42 anos. O contexto foi: Mariana estava em uma festa. Embriagada. Na ocasião, levando-a para um camarim no qual não havia câmeras, André Aranha a estuprara. O caso chegou até a justiça e Aranha foi denunciado por estupro de vulnerável. No caso, Mariana se enquadraria como uma vítima vulnerável pelo fato de estar embriagada no momento e não poder consentir com o ato sexual. Independente de ela ter ou não consentido, a embriaguez é um estado que pode invalidar o consentimento, uma vez que a pessoa não estaria em condições de pensar sobre. O réu não negou a ocorrência de atos sexuais entre os dois. Entretanto, já no primeiro julgamento, que ocorreu em 1ª instância em setembro de 2020, Mariana foi totalmente descredibilizada: fotos suas nas redes sociais foram usadas no sentido de mostrar como ela era uma mulher de “vida fácil” e foi suscitada a dúvida: ela realmente não estava em condições de consentir? Nesse primeiro julgamento, Aranha foi inocentado sob a alegação de falta de provas. No segundo julgamento, em 2ª instância, que aconteceu no último dia 7/10, o TJSC manteve a absolvição.

Esse caso conversa com o que foi exposto sobre cultura do estupro em vários pontos. O primeiro deles é que Mariana não se encaixou como uma vítima ideal. Embora seja uma mulher branca – o que, em tese, seria suficiente para a associar com essa categoria de vítimas, afinal, está mais próxima do ideal de “mulher pra casar”, em comparação com as mulheres negras -, o estado de embriaguez em que se encontrava foi suficiente para lhe distanciar desse ideal. Isso significa que, embora a única coisa que o Judiciário tenha falado, no seu veredicto, é que o réu estava absolvido, o que aconteceu ao longo do julgamento foi, em certa medida, uma culpabilização simbólica da vítima. Especialmente ao longo das alegações da defesa do réu, no primeiro julgamento, houve uma tentativa de desqualificar a vítima, como se a responsável pela situação fosse ela, e não o réu. De todo modo, Aranha foi absolvido por falta de provas.

No Direito, em atenção aos princípios garantistas que devem reger nosso processo penal, a dúvida deve ser lida em favor do réu e isso faz parte da presunção de inocência. Significa que, em tese, só condena-se alguém com provas robustas de que o crime aconteceu e de que esse alguém foi de fato o responsável por ele. No contexto de crimes sexuais, isso significa que a palavra da vítima, sozinha, não é prova suficiente para embasar a condenação. Entendemos que o garantismo, em termos de Direito Penal, é de fato fundamental para construirmos um processo que faça sentido dentro de um Estado Democrátido de Direito. Se ainda usamos o Direito Penal como recurso para responsabilizar pessoas pelo cometimento de crimes, o que problematizamos aqui extrapola a dificuldade de responsabilizar juridicamente um acusado de cometer estupro. Problematizamos, em primeiro lugar, a situação amplamente desconfortável em que a vítima é colocada dentro do processo. Muitos casos de violência sexual de fato acontecem entre quatro paredes, sem câmera, sem testemunhas… Além disso, às vezes, como já expusemos, leva um tempo para a mulher se reconhecer como vítima, o que, nos casos de estupro, inviabiliza o exame de corpo de delito, por exemplo. Em casos de incapacidade de consentir, nos quais não houve uma luta corporal, esse tempo de se reconhecer como vítima inviabiliza também o exame toxicológico que atesta o estado de embriaguez e é o meio de provar que a vítima, naquele momento, era vulnerável.

Levando em conta esse intrincado processo, outro ponto relativo à cultura do estupro está na dificuldade de denunciar. Voltemos ao caso de Mariana Ferrer. Ela é uma mulher branca e de classe média, o que, em tese, lhe possibilita os recursos materiais e simbólicos para tomar a decisão de começar um processo criminal e seguir em frente com ele. Ainda assim, seu agressor foi absolvido pela justiça. Ainda assim, ela foi revitimizada ao longo do processo. E se pensamos em mulheres negras? Em mulheres pobres? Você se lembra de casos de estupro de mulheres negras com a mesma repercussão na mídia? Nós não nos lembramos.

Nosso objetivo com esse texto não é o de responder todas as questões relacionadas à violência sexual e cultura do estupro. O que queremos é propor reflexões e estimular o pensamento crítico para que possamos, sempre, olhar com estranhamento para nossas instituições e para o que é visto como normal e como anormal (como “estuprável” ou não?) em nossa sociedade. Se você é mulher e nos lê, esperamos que este texto ajude a tornar a violência sexual um tema com menos tabus. Esperamos poder, cada vez mais, conversar sobre e pensar em alternativas de lidar com a situação que não tirem nossa dignidade. Se você é homem e nos lê, esperamos que nossas reflexões lhe levem a refletir também sobre a relação entre sexo e agressividade e sobre a naturalização de uma cultura que tão cruelmente aproxima essas duas coisas que deveriam andar tão separadas. E a todas e todos nossas/os leitoras/es, achamos válido relembrar: a culpa nunca é da vítima.

*Isabella Matosinhos e Isabela Araújo são pesquisadoras do CRISP na Universidade Federal de Minas Gerais e escrevem para o Justificando na coluna Pandemia e Segurança.

Este texto não reflet necessariamente a opinião do blog Falou e Disse.