Trinta anos do “Close-Up” de Abbas Kiarostami no cinema

Por

Pedro H. Azevedo*

Em 16.08.2020

“O cinema começa com D. W. Griffith e termina com Abbas Kiarostami”. A frase do sempre polêmico e subversivo cineasta Jean-Luc Godard pode até ser hiperbólica com relação ao que o cineasta iraniano Abbas Kiarostami representou na história do cinema, mas não deixa de ser um apontamento para a importância que o também poeta e fotógrafo teve para o cinema contemporâneo.

Kiarostami nasceu na capital do Irã, Teerã, em 1940, se formou em Belas Artes pela Universidade do Teerã com foco em pintura e design gráfico. Seu início no cinema foi em 1970, mas foi somente em 1987, com o lançamento do filme “Onde Fica a Casa do Meu Amigo?”, que ele ganhou reconhecimento internacional. Esse filme acabou sendo o primeiro de uma trilogia de filmes passados em Koker, vilarejo do norte do Irã. Os outros dois filmes, “E a Vida Continua” (1992) e “Através das Oliveiras” (1994), criam camadas de realidade e ficção que emaranham qualquer noção de verdade e mentira. Essa mesma abordagem o consagrara em 1990 com o lançamento da sua obra-prima, “Close-Up”.

Dizer que “Close-Up” é o maior filme da história não é qualquer exagero. O filme, documental e ao mesmo tempo ficção, conta a história real do crime cometido pelo humilde Hossain Sabzian, que fingiu ser o conhecido diretor iraniano Mohsen Makhmalbaf para uma família de classe média do Irã e acabou se favorecendo do status do diretor, dizendo que iria produzir um filme junto com a família, para ganhar um tratamento diferenciado dos mesmos. Depois de um tempo, desconfiados do impostor, eles, junto com um jornalista investigativo e a polícia, desmascaram Sabzian.

O caso por si só já é interessante, mas Kiarostami consegue ir muito além de mostrar um fato. Ele realiza uma obra que vai discutir a própria relação entre realidade e ficção dentro do cinema. O filme é composto de imagens reais do julgamento de Hossain Sabzian, filmadas pelo diretor e imagens dramatizadas de coisas que supostamente aconteceram. Porém, as cenas dramatizadas são encenadas pelas pessoas que a viveram. A família vítima interpreta ela mesma, Sabzian também e até o próprio Kiarostami aparece dentro do seu próprio filme, de modo que existem cenas onde não é possível saber se foram encenadas ou se são a realidade pura que foi gravada. Indo até além disso, existem cenas que foram acontecimentos reais gravados pelo diretor, mas que, justamente por terem sido gravados acabam ganhando uma camada de dúvida. Assim como em alguns domínios da física, o efeito do observador — isto é, a alteração que a interação entre o observador e o objeto observado causa no objeto observado — está presente aqui. Ao estarem conscientes (e Kiarostami faz questão de nos deixar consciente de que eles sabem que estão sendo filmados) da presença da câmera, a veracidade do comportamento das pessoas gravadas acaba sendo jogada em um campo de incertezas. Aqui, mais do que nunca, a linha entre o fato e a ficção se perde.

Temos uma recriação da realidade por meio da ficção, Sabzian interpretando ele mesmo fingindo ser (interpretando) Makhmalbaf. Uma mentira (o próprio filme em si, uma realidade fabricada) é criada dentro de uma verdade (o crime que realmente aconteceu) que foi criada através de uma mentira (a tentativa de fraude de Sabzian), que, por sua vez, nasceu do amor verdadeiro que Sabzian tem com o cinema de Makhmalbaf.

Ele diz em seu julgamento: “Cada vez que me sinto triste na prisão penso no verso do Corão que diz: ‘Diz o nome de Alá e o teu coração será confortado.’ Mas não sinto conforto nenhum. Sempre que estou deprimido ou transtornado, sinto o desejo de gritar ao mundo a angústia da minha alma, os tormentos que passei, todas as minhas tristezas, mas ninguém as quer ouvir. Eis que chega um homem que retrata todo o meu sofrimento nos seus filmes e posso ir vê-los uma e outra vez. Mostram o rosto maligno daqueles que brincam com a vida dos outros, o rico que não presta atenção às necessidades materiais básicas do pobre. (…) Ele diz as coisas que eu desejei ter expressado”. A identificação que ele tem com os filmes do diretor é tão grande que a sua tentativa de se passar pelo cineasta é muito mais uma consequência dessa identificação e do seu amor pelo cinema, do que a tentativa de ganhar alguma vantagem material unicamente.

O crítico e teórico do cinema André Bazin, no ensaio “Ontologia da imagem fotográfica”, confere a fotografia (e a prolonga ao cinema) a objetividade na interação com a realidade como elemento específico da mesma (BAZIN, André. O que é o cinema? São Paulo: Ubu Editora, 2018). “Pela primeira vez, uma imagem do mundo exterior se forma automaticamente, sem a intervenção criadora do homem, segundo um rigoroso determinismo”. Bazin ainda diz: “A objetividade da fotografia lhe confere um poder de credibilidade ausente em qualquer obra pictórica.” E é justamente esse pensamento que vejo Kiarostami explorar ao máximo no seu filme, levando-o para extremos por meio de um complexo jogo metalinguístico.

Se o cinema possui esse poder de trazer, mais do que qualquer outra coisa, uma verossimilhança à imagem — palavra esta que já guarda dentro de si o atributo da virtualidade — como seria fazer um filme onde a própria realidade se desdobra por meio de uma falsidade? A objetividade da câmera é capaz de superar uma realidade falsa? O que muda fundamentalmente entre a encenação de uma ação e a própria ação que realmente aconteceu? A percepção já não carrega dentro de si mesma uma dose de ficção, de modo que a diferença entre o real e a ficção não passam apenas de instâncias subjetivas da mente, e o cinema, por meio da objetividade da câmera, acaba sendo um instrumento que, de forma paradoxal, revela isso mais do que qualquer outra coisa? Essas perguntas me vêm à mente quando penso no filme.

Por incrível que pareça, toda essa metalinguagem presente é trabalhada de forma muito simples no filme, no sentido de não ser nada que prejudique a compreensão da trama. São poucos os que conseguem impor uma profundidade dessa dimensão em um filme que possua uma relação expressiva com o espectador tão direta como aqui. Em nenhum momento Kiarostami procura complicar o seu filme com artifícios de linguagem que muitas vezes floreiam a narrativa e nada querem dizer.

Para além da discussão com o cinema, Kiarostami ainda fala sobre a sociedade e o valor do humano em si mesmo, já que um dos porquês de Sabzian continuar a se passar pelo cineasta de quem era fã foi o fato de finalmente poder ser alguém que é respeitado, alguém cuja a opinião o mundo leva em consideração. “Eles (a família) faziam tudo que eu pedia. (…) Nunca antes alguém me obedecera assim, simplesmente porque sou um homem pobre. Mas porque fingi ser essa pessoa famosa, eles fariam o que lhes pedisse”, diz Sabzian quando perguntado sobre as razões do seu crime.

A questão principal trabalhada por Kiarostami em “Close-Up” vai dar as caras nos seus próximos filmes. Nos já citados filmes subsequentes da trilogia Koker, no seu filme vencedor do Festival de Cannes de 1997 “Gosto de Cereja”, e de forma mais brusca em “Cópia Fiel”, de 2010. Nunca antes alguém havia ido tão fundo na investigação entre o limite do simulacro cinematográfico com a realidade propriamente dita de forma tão prática e original. Depois de mais de um século de cinema, poucos são os cineastas que conseguem realizar algo dessa magnitude. Kiarostami foi, sem dúvida, um dos maiores que já existiu.

*Pedro H. Azevedo escreve e administra a página Um Toque do Cinema no Instagram. Escreve aos domingos.

Foto destaque: dergreif-online.de