Sarará miolo

Por

Mário Gouveia Júnior*

Em 18.09.2020

Por uma educação libertadora (ou) A única redenção possível para o racismo nosso de cada dia

Em começos da década de 1940, quando ainda se buscava a melhor interpretação do que viria a ser o Brasil enquanto nação, Assis Valente, compositor brasileiro de sambas e marchinhas de sucesso – sobretudo nas vozes de Carmen Miranda e Orlando Silva – em função de seu ofício, anunciava que era chegada a hora dessa gente bronzeada mostrar seu valor, fazer sambar até o Tio Sam, esquentando pandeiros e iluminando terreiros. O samba-exaltação intitulado “Brasil Pandeiro”, composto por ele, foi oferecido a Carmem Miranda.

A intérprete de projeção internacional, que voltava de uma temporada de apresentações nos Estados Unidos, não quis gravar a música, segundo ela, “borocoxô”. O seu compositor, então, a ofereceu à banda Anjos do Inferno, que, com ela, fez muito sucesso à época. No entanto, seria na gravação dos Novos Baianos, em 1972, no mítico álbum “Acabou Chorare”, que a canção ficaria eternizada como um dos hinos de nosso país; quase uma oração pela valorização dos valores da cultura popular brasileira, que não tinha, e ainda hoje não tem, par.

A recusa por parte da Pequena Notável em gravar uma canção que falasse em “gente bronzeada”, no “Morro do Vintém”, em “batucada”, em “terreiros iluminados” e que atribuía ao Brasil o adjetivo “pandeiro” pode ser atribuída à época em que a ditadura Vargas dispunha de um aparelho censor atento a tudo que ia de encontro às intenções de seu líder. O Estado Novo de Getúlio, embora buscasse uma identidade nacional em torno da ordem, do progresso e do trabalho, mas também associada ao samba carioca, não estava muito disposto no sentido de associar a cultura brasileira com contribuições tão nitidamente das camadas populares. Ainda vigorava o entendimento da necessidade da construção de uma história ligada aos grandes líderes, aos heróis, e, por conseguinte, aos apagamentos de muitas histórias e memórias não atreladas a esse entendimento.

Mesmo a aclamadíssima “Aquarela do Brasil”, composta em 1939 por Ary Barroso, precisou lidar com a tentativa de censura por conta de um verso que afirmava ser o Brasil “terra de samba e pandeiro”. O mulato inzoneiro e a morena sestrosa, isto é, cheio de manhas ou malícia, não foram censurados, como também não foi vetado o verso “tira a mãe preta do cerrado”. Neste último verso, diga-se de passagem, o autor fazia um pedido para que tirassem aquele personagem definitivamente de sua senzala, ou de seu locus de exclusão, “cerrrado”.  Pedia, assim, para que findasse o apartheid social entre brancos e pretos “[porque ele queria] ver essa dona [a mãe preta] caminhando pelos salões arrastando o seu vestido rendado”.

O implícito desejo de seu compositor por igualdade racial, então, ficou ainda mais implícito e velado pelo refrão e pelos versos da canção que exaltava as qualidades e a grandiosidade do país, ou ao menos, assim o foram usadas, habilmente, pelo Departamento de Imprensa e Propaganda. Ademais, atentem para o fato de que toda a presença de elementos não-brancos na letra do samba-exaltação é feita por meio de uma nítida suavização da mestiçagem, bem como por meio de características exóticas ou sensuais dessas pessoas, esta última, sobretudo, no caso da mulata.

Àquela época já repercutia, nacional e internacionalmente, a tese da democracia racial, atribuída à Gilberto Freyre. Este sociólogo recifense, que foi considerado um dos intérpretes do Brasil, propôs-se a analisar a formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal, tendo Pernambuco como uma espécie de microcosmo nacional. Por meio daquela famosa tese, não poderia haver racismo no Brasil porque nosso povo era resultado de uma harmônica miscigenação entre o indestemido conquistador português e as insaciáveis mulheres indígenas e africanas escravizadas. Em sua base de argumentação, teria sido a lascividade destes três personagens que formaram o que o mestre de Apipucos chamava de meta-raça. Éramos, portanto, todos mestiços, e, enquanto tal, devíamos nos orgulhar dessas origens.

Do alto da miopia inerente àqueles que fazem considerações com mais saudade dos tempos áureos de suas casas grandes do que com a seriedade que um pesquisador dos estudos históricos e sociais deveria ter, ocultava-se toda a violência das guerras de conquista da América portuguesa junto aos povos originários, e, por conseguinte, o extermínio de muitos desses povos e nações, e toda a violência dos mais de 300 anos de escravidão de pessoas vindas de África. Essas ideias acerca da mestiçagem harmônica – como se não tivesse acontecido um sem número de violências sexuais entre homens brancos e mulheres indígenas e negras – e sobre a ausência de racismo, vigoraram no Brasil e no exterior, quase que como versões oficiais, até a segunda metade da década de 1970, quando só então começaram a ser questionadas.

Atentem para o fato de que esse questionamento ocorre tão somente em âmbito acadêmico; isso porque, bem sabemos que, sob o ponto de vista das mentalidades, uma verdade que fora amplamente aceita e vigente por quase meio século, dificilmente deixaria de ser creditada enquanto tal apenas porque novos estudos revelaram outros pontos de vista, que desmentiam aquele. Por mais que seja consenso na atualidade a violência que representou a empresa colonial ibérica no Novo Mundo e a intensa exploração sexual do homem branco sobre indígenas e negras, evidenciada pela enorme diversidade de tons de pele observável em nosso país.

Mesmo após o centenário da Abolição da Escravatura, e em todos os anos que se seguiram, parte considerável da sociedade seguiu desacreditando na dívida histórica de reparação social que temos para com os afrodescendentes e para com os descendentes de povos tradicionais. Seguem, do mesmo modo, negando que o racismo seja um fenômeno social e cultural real, que garante privilégios para as pessoas brancas, e preconceito para as pessoas que fenotipicamente se afastam desse padrão estético; ou ainda afirmam que determinada atitude preconceituosa nem seria racismo, já que aquele que se sente ofendido “nem é tão negro assim!”.

 

É nesse contexto que emerge o colorismo, ou pigmentocracia, como uma faceta de discriminação racial baseada na cor da pele da pessoa. Assim, quanto mais claro for o tom da pele, ou mais embranquecidos os fenótipos de uma pessoa negra, desde o tipo de cabelo, formato de nariz e da boca, maiores serão as suas chances de aceitação e menores as probabilidades de vivenciarem alguma forma de exclusão imposta pelo racismo. É desse modo que a tonalidade da cor da pele é fundamental para o tratamento que o sujeito receberá da sociedade a despeito de suas origens raciais; é como esse sujeito será lido socialmente. Mas isso, claro, se considerarmos as relações dentro do território nacional, onde somente aí, as pessoas identificadas socialmente, e mesmo individualmente, se reconhecem como brancas. Isso porque basta que esse brasileiro viaje para os Estados Unidos ou para a Europa para perceber que, em determinadas situações, não será tratado nem reconhecido como branco!

Foto: uol.com.br

Baseado nesse entendimento de que quanto mais próximo de características estéticas brancas, mais bem aceito o indivíduo é na sociedade é que existem tantos comportamentos e negativas em torno da assunção da identidade negra e/ou afrodescendente. O mesmo Neymar que esta semana sofreu mais um ato de racismo em uma partida de futebol, e que nunca deu muitos sinais de que se percebia negro ou afrodescendente, deve, por isso mesmo, ter ficado muito incomodado por ter sua imagem de homem rico ter sido associada a de homem preto.

Nunca me posicionarei contra alguém que se apresente como vítima em qualquer situação que seja ao ponto de duvidar da veracidade de suas acusações, mas nessa situação, uma inquietação insiste em não calar: se você não se reconhece como negro, como pode sentir que foi vítima de racismo?

Nas outras ocasiões em que esteve como alvo de comportamentos racistas, o jogador ou ignorou completamente ou aproveitou o fato de terem atirado bananas em campo, chamando colegas de equipe, notadamente afrodescendentes como ele, de macacos e lançou uma campanha publicitária (#somostodosmacacos), que, se por um lado, em nada contribuiu para o necessário debate sobre a importância de combater o racismo dentro ou fora das quatro linhas, por outro, incrementou a venda de camisetas e adereços de algumas marcas de famosos amigos do atleta…

Por mais que Baco Exu do Blues afirme que: “Gostar da cultura não te faz preto; nem ter dinheiro te torna branco”, e, antes dele, Gilberto Gil ter pedido em verso e prosa por que  se sarasse a cura “dessa doença de branco; De querer cabelo liso; Já tendo cabelo louro; Cabelo duro é preciso; Que é para ser você, crioulo”, é difícil vencer as fortes correntes de séculos de uma educação que nunca se constituiu massivamente como libertadora.

O Patrono da Educação Brasileira – e aniversariante da semana, que amanhã, dia 19 de setembro, faria 99 anos – Paulo Freire considerava que “Num contexto em que não existe uma educação libertadora, o sonho do oprimido é tornar-se opressor.”

Uma educação libertadora se faz por meio da valorização das experiências dos educandos com coisas reais, bem como com o estímulo a reflexões e críticas que o farão despertar para o pleno exercício de uma cidadania ativa. E não mais uma cidadania passiva, que se restringe ao conhecimento dos deveres e direitos que lhes são atribuídos por instâncias superiores. Essa cidadania ativa se efetiva pela compreensão das possibilidades de ler o mundo, e, ao perceber as injustiças sociais vigentes, nele intervir, buscando meios para as superações dessas injustiças. Nesse contexto, não se perde de vista a luta por equidade entre as pessoas, reivindicando, inclusive, o cumprimento e/ou a criação de leis que garantam essa prerrogativa universal. Leia-se, a todos de acordo com suas necessidades e de todos de acordo com suas capacidades.

Todos aqueles e aquelas que não tiveram a oportunidade de experienciar esse modelo de educação libertadora, e que, portanto, não transcenderam da condição de indivíduos à condição de sujeitos de sua formação para a leitura de mundo, segundo Paulo Freire, estariam condicionados à mera reprodução das normas socialmente aprendidas no âmbito familiar e escolar, sobretudo. Se assim o é, como podemos exigir que pessoas que vivenciaram modelos de educação escolar com sérias lacunas, até mesmo na perspectiva de uma educação que reproduzisse os conteúdos determinados pelo sistema, pudessem se comportar de modo diferente ao saírem da condição de oprimidos?

Um jovem afrodescendente e periférico, que percebeu no futebol a única oportunidade de mudar a sua condição social e a da sua família, e que, dentre tantos, teve a sorte de ter uma carreira de sucesso, muito dificilmente teve meios de se manter na escola até completar sua formação básica. E se o fez, ainda mais dificilmente conseguiu perceber a própria condição de marginalizado ou oprimido que a sociedade lhe atribuiu. Pois bem; este jovem que foi oprimido por sua raça e por sua condição social, ao deixar de ser oprimido, sem passar por um processo de conscientização dessa opressão, que posicionamento ele irá tomar nessa sociedade que o oprimiu? Ainda que não o faça de modo deliberado, apenas portar-se com neutralidade, isto é, não se posicionar diante de um contexto de opressão já se configura como atitude opressora.

*Mário Gouveia Júnior é professor acadêmico, mestre em Ciência da Informação. Escreve às sextas-feiras.

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