O “tao” da boa ancestralidade ou, mora na filosofia a necessidade de sermos colaborativos

Por

Mário Gouveia Júnior*

Em 02.10.2020

“Lucy” é o nome da trama francesa de ficção científica escrita, produzida e dirigida por Luc Beson, em 2014, que retrata uma suposta possibilidade de o ser humano alcançar níveis de capacidade cerebral superiores aos míticos 10%. À medida que sua consciência se expande, a personagem central da história adquire capacidades mentais cada vez maiores, tais como telepatia, telecinese, eletrocinese e absorção instantânea de conhecimento. Em dado momento, ela percebe sua morte iminente; o que a faz procurar pelo maior especialista em pesquisas sobre o cérebro.

Ao relatar o seu caso e conseguir provar-lhe que falava a verdade, Lucy pergunta ao especialista o que deve fazer com todo o seu conhecimento, que segue em expansão, se está certa de sua morte. Ele lhe responde que o principal sentido da vida sempre foi o de buscar e transmitir conhecimento. De modo análogo, o primeiro casal teria alcançado o livre-arbítrio ao desejar e consumir o fruto proibido do conhecimento do bem e do mal; o preço pago pela obtenção da autonomia foi labor et dolor, traduzida como a supressão de sua imortalidade.

Sendo mortais – desde sua formação mais basal, a celular – foi facultado aos seres humanos a capacidade de transmitir suas informações genéticas às células seguintes e assim por diante. Assim, conhecimento e aprendizado se perpetuam com o tempo. O que se pode traduzir na máxima bíblica cristã: “multiplicai-vos e espalhai-vos sobre a terra abundantemente”.

Dissera Platão que a saída da caverna, invariavelmente, causaria desconforto aos olhos e ao espírito, sendo preciso reaprender a enxergar, a perceber o outro mundo, que não é o das sombras, mas o da luz e da verdade – que liberta. Liberta-se aquele que alcança o conhecimento. Embora essa prerrogativa seja altamente sedutora para muitos, há outros tantos que não desejam conhecer simplesmente porque não desejam a liberdade. É cômoda a segurança e as certezas, ainda que elas aprisionem os indivíduos. Aí reside a maravilhosa complexidade da mente humana; nem todos pensamos ou desejamos as mesmas coisas.

A Lucy da ficção é o ente que mais se aproxima da personificação do conhecimento pleno, que desconhece dor, medo ou desejo; Lucy também é luz. A analogia entre conhecimento e luz prossegue quando se percebe que a luz do fogo, por exemplo, que é tributária do ar, ou do oxigênio, não diminui ao ser compartilhada. Fato semelhante se dá com a partilha do conhecimento.

Antes de os homens e mulheres primitivos superarem o estado de nomadismo necessário para que pudessem empreender a caça e a coleta de alimentos, foi vivenciado por aqueles nossos ancestrais, o que Noam Chomsky chamou de Revolução Simbólica. Esse é o momento em que os grupos humanos adquirem capacidades mais refinadas de se comunicar e de registrar as informações relativas ao seu cotidiano; o que contribuiu sobremaneira para a disseminação do conhecimento existente, aprimorando noções e expectativas ao mesmo tempo que se configurou como fator indispensável à garantia da preservação da espécie frente a um ambiente hostil e cercado de predadores.

Em muitos outros momentos da História, todavia, os grupos humanos se depararam com demandas maiores do que ofertas de subsistência, o que levou, posteriormente, à fundamentação da ótica darwinista da seleção natural: “os mais aptos sobrevivem”. Darwin tinha razão, e todos os eventos históricos que mostravam o sucesso de certas civilizações, inevitavelmente apontavam como causas, ou mesmo condição sine qua non, o domínio de outras civilizações. Foi subjugando militarmente outros povos que persas, macedônios, romanos, árabes e cristãos alcançaram sucesso em seus intentos. Anos depois, a concepção da empresa mercantil europeia estimulava a competitividade em detrimento de uma integração que pudesse engendrar um crescimento conjunto. A lógica competitiva da época, além de não permitir espaço para que se pensasse em partilha de conhecimentos, ainda se respaldou empiricamente pelos indiscutíveis avanços tecnológicos e científicos alcançados em momentos de guerra.

Competir por territórios, mercados, poder. A ideia de que a humanidade desenvolvia uma marcha evolutiva para o progresso e que todas as civilizações que não compreendessem ou não dispusessem de aparatos similares poderiam facilmente desaparecer ou se reconfigurar ante às vontades dos vencedores. Apagavam-se memórias, reescreviam-se novas tradições que cultuavam ou legitimavam o deus lucro. Ter sucesso e dinheiro chegou ao ponto de se tornar sinal divino de predestinação ao paraíso cristão! Quem poderia ser contra os conquistadores-eleitos, se até mesmo o seu deus estava ao lado deles?

Albert Einstein teria dito que é mais fácil quebrar átomos que desbancar preconceitos ou paradigmas. Mais relevante do que o nome do “santo”, importa refletir sobre o “milagre”. Quando ao longo de séculos são reafirmados certos valores, muitas daquelas impressões tornam-se dogmas. Um desses é a ideia de que a atualidade se apresenta como sinônimo de ápice da evolução humana, e, por conseguinte, nossos ancestrais estiveram em estágio inferior a nós. Por essa lógica, aqueles que nos sucederão, teriam ainda melhores condições de existência do que atualmente; certo? Parece que não…

Essa visão teleológica que entende o progresso como uma flecha temporal que só se aprimora à medida que passam os ciclos, é uma visão simplista e antrópica, que coloca os seres humanos como os grandes construtores, como o referencial, a medida de todas as coisas. Há, porém, um prisma, que, acreditamos, apresenta-se como mais coerente com a realidade: a visão entrópica, que deriva do conceito de entropia Por essa perspectiva, o mundo não é uma grande trama que caminha para o progresso, mas para a desconstrução ou desagregação. Por esse prisma, desde a época do Big Bang, iniciou-se um processo de degeneração do mundo.

Uma vez ciente desse contexto, o homem coletivo cria processos em busca de mitigar esse processo degenerativo. Busca-se, assim, acomodar, de modo corporativo, as impressões deste universo em permanente mudança. E nesse contexto, o mundo imobilizado que se experiencia nada mais é do que os sujeitos e os grupos humanos se acomodando corporativamente, em suas zonas de conforto, conforme pontua Edmund Phelps.

Segundo este pensador, o corporativismo corrói o processo entrópico da inovação. Todavia essa entropia é algo que se pode até negar, mas não se pode deter, tal como o alvorecer de um novo dia ou como o advento do próximo verão. A entropia dos sistemas é fluxo, como um rio, e o seu represamento tem consequências múltiplas; a detenção da vazão desse hipotético rio gera um potencial de energia conversível a outros sistemas. Logo, por mais que se busque evitar a entropia existente em cada relação do universo, de alguma forma, a sua ebulição vai originar novos estados, novas entropias, novas relações marcadas por um alto grau de complexidade.

A filosofia hindu nos ensina que os quatro princípios (Tejas, princípio do fogo; Waju, princípio do ar; Apas, princípio da água; e Prithivi, princípio da terra), mais densos formaram-se do quinto princípio, o Akasha. Este é o princípio original, a quinta força, também chamada de quintessência; ele é a origem e o fundamento de todas as coisas e de toda a criação, sem ter sido criado, e, ao mesmo tempo, sendo isento de espaço e de tempo. As religiões o chamam de Deus, o mantenedor de todo equilíbrio, a gênese de todos os pensamentos e ideias, o conhecimento pleno, a perfeita simbiose entre o macrocosmo e o microcosmo, que, por conseguinte, estão também interligados. Nesse particular, nossos princípios filosóficos nos levam ao entendimento de que este equilíbrio mantido pela quintessência é um equilíbrio dinâmico, um estado de entropia.

Desse modo, tudo o que é encontrado no Universo, em uma escala maior, reflete-se no homem e na natureza em uma escala menor. E ambas essas escalas são provenientes do Akasha, o responsável, inclusive, pela propagação de ondas elétricas e magnéticas, bem como da esfera de vibrações de onde provêm a luz, o som, a cor. O Akasha, por esse viés, é fluxo de informação, é o conhecimento de tudo o que existiu, existe e será criado. Esta perspectiva hindu vai ao encontro dos ideais platônicos de anamnese, por meio do qual se defendia que o homem não é criador de pensamentos, mas se recorda, contempla a origem do pensamento, que reside na mais elevada esfera do Akasha, ou do plano das ideias.

Voltando à alegoria de Lucy, como personificação do conhecimento pleno, da luz, e, por conseguinte, do fogo, mas também do ar, da água e da terra, podemos inferir que, finalmente, ao alcançar o conhecimento pleno, ela se desmaterializa, torna-se éter – O Akasha também é denominado de conhecimento etérico – porque se torna convergência, torna-se o amálgama dos quatro elementos; algo tão supremo que não pode ser comportado em uma estrutura física, isto é, em uma parte ou mesmo em todas as partes. Ela se converte no todo, estando em todos os lugares, sendo parte de tudo; ela deixa de ser criatura e passa a ser Akasha – o conhecimento pleno; o início, o fim e o meio; a causa, a existência e a consequência da dinâmica entrópica do Universo ao mesmo tempo.

Tudo é trajetória, pouco sendo relevantes os começos e os sentidos – embora, naturalmente, não de todo desprezíveis – o caminho que se constrói, como diria Ginzburg, António Machado ou Guimarães Rosa, é a verdadeira aventura das histórias.

O futuro que buscamos encontra-se nos ecos no passado, mimetizando-se com o princípio, como nos ensina o Pentateuco, quando sentencia que no princípio era o verbo. Pois bem, o verbo é a ação, é o predicado verbal que nos envolve. É o que fazemos, portanto. Muitas das ruas por onde circularemos todos ainda não existem, algumas já foram construídas, mas outras tantas ainda precisam ser feitas, os seus nomes serão criados. Tudo depende do que nós fizermos hoje. Não é possível voltar no tempo senão por meio de ferramentas como fotografias, filmes ou textos, por exemplo. Essas próteses de memória nos auxiliam nessa maravilhosa tarefa de viajantes do tempo graças aos esforços empreendidos pelos já mencionados gigantes de tempos anteriores.

*Mário Gouveia Júnior é professor acadêmico, mestre em Ciência da Informação. Escreve às sextas-feiras.

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