A morte bela

Por

Vera Lúcia Braga de Moura*

Em 29.10.2020

Só uma vida que se movimenta naquilo que vale a pena viver, vai entender o sentido da “morte bela”, como afirma Ana Claudia Quintana Arantes (2020) na sua obra “Histórias lindas de morrer”. É autora também da obra “A morte é um dia que vale a pena viver” (2019). Esse assunto sobre a finitude humana sempre me chamou a atenção. Quando tento de alguma forma refletir sobre a morte não encontro, geralmente, muita gente interessada. É um tema que diante das incertezas da vida nos traz uma certeza inconteste de que todos vamos morrer um dia. E não sei por qual razão fugimos dessa realidade humana. Falar sobre a morte, como indica Ana Claudia, traz à tona a vida que importa. De que forma estamos conduzindo a nossa vida? Como utilizamos o nosso tempo? Afinal, temos um prazo de validade na terra. Somos finitos. Alguns consideram que a morte ocorre apenas do ponto de vista físico. Mas, nesse momento não vamos discutir para além da morte, apenas propomos uma reflexão sobre a existência humana e sua finitude.

Ana Claudia é medica geriatra e se especializou em cuidados paliativos, ou seja, cuidar da pessoa na fase terminal da vida, visando que não sofra. Em suas conversas com os pacientes, a médica traz consigo o ensinamento das marcas que deveriam constar no livro da vida; são aquelas que nos ensinaram a viver bem. O nome dessa página seria “ o que não passa” (2020, p.27). O que não passa são as memórias que ficam impressas em nossos pensamentos, sentimentos, atitudes. O que aprendemos com as experiências boas ou ruins em nossa vida, não passam, ficam registradas em nós. Nas relações dos pacientes em terminalidade, a médica comenta sobre a importância dos profissionais de saúde em compartilhar orientações sobre a doença e o prognóstico às famílias, apoio emocional e em validar o desejo do paciente em falar sobre a morte.

 

Chove na terra seca e na terra fértil. E assim é com a morte também.

 

Em um dos seus relatos e cuidados paliativos, a médica diz que escutou uma paciente dizer que estava com medo ao ser questionada como estava naquele dia.  A paciente estava com medo da morte. A médica disse que não precisa falar sobre a morte, mas que poderia falar sobre o medo. A geriatra se preparou para acolhê-la e fez uma analogia com a chuva que chove em todo lugar sem diferenciação de espaço. Chove na terra seca e na terra fértil. E assim é com a morte também.

Em relação aos cuidados paliativos, a médica afirma que não significa sedar o paciente e esperar a morte chegar. Muitos pensam que é apoiar a eutanásia ou acelerar a morte, mas isso é um equívoco. A geriatra diz que não faz eutanásia, e acredita que quem fez uma formação consistente em cuidados paliativos não a pratica. Ana Claudia ressalta que aceita a morte como parte da vida e toma todas as condutas para proporcionar a saúde definida nesses cuidados como bem-estar, como resultado do conforto físico emocional, familiar, social, espiritual (2019, p.49).

A vida vivida com dignidade, sentido e valor, de forma dimensional pode aceitar a morte como parte da vida (2019, p.49). A morte pode chegar no tempo certo, assim será conhecida como ortotanásia. Essa questão de entender a morte como parte da vida, do seu processo natural e inevitável, é importante. Por mais nebulosa que a morte possa parecer para nós, oriundos da cultura ocidental, deveríamos aprender a encarar a finitude humana como parte da vida, como uma vivência nesse campo experiencial das nossas vidas. Para mim, também, aperta a incerteza, o medo da perda de pessoas queridas, a nossa própria interrupção de experiência na terra considerando o plano físico. Isso tem a ver com os nossos apegos e receios do resultado desse processo que chamamos de finitude. Esse receio nos assusta e nos afasta do entendimento do que vem a ser a morte. Penso que é importante e necessário nos debruçarmos sobre essa questão, para nos familiarizarmos com essa parte tão importante das nossas vidas. A morte é quando estamos nos despedindo de um ciclo e é necessário estamos abertos para o inesperado, as incertezas das nossas trajetórias. Mas, esse não é o ponto. Nesse momento, a questão para refletirmos é como fazer para aprendermos a morrer dignamente.

O que a experiência da dor nos quer mostrar ou ensinar?

É sabido que existem vários tipos de mortes. Umas, seguindo o curso natural da vida e a falência múltiplas dos órgãos, outras, inesperadamente, até abruptamente, pois podemos ser solapados desse plano como a chama de uma vela que acabou de apagar. Discute-se sobre a dor. Morrer dói? O que nos diz o sofrimento em vários estágios da vida? O que a experiência da dor nos quer mostrar ou ensinar? A ideia é que desmistifiquemos o morrer e passemos a concebê-lo como uma experiência que vamos precisar vivenciar, e não como um dilema de que tudo acabou, mas como um processo natural da vida. É um convite para de forma processual aprendermos sobre essa etapa inexorável da existência humana.

A médica brasileira, Ana Claudia Quintana Arantes, nos seus cuidados paliativos para tornar a morte dos seus pacientes digna desse momento, propõe intervenções médicas com muito cuidado e conforto. Acolhe, escuta, dialoga e procura sedar o mínimo possível o paciente e afirma que “ as pessoas morrem como viveram. Se nunca viveram com sentido, dificilmente terão chance de viver a morte com sentido” (2019, p.50). A médica diz ainda que o momento da morte é um “tempo sagrado da vida humana”. A filha de um paciente deixou como agradecimento esse registro pela morte do pai: “Cuidados paliativos é tratar e escutar o paciente e a família, é dizer sim, sempre há algo que pode ser feito da forma mais sublime e amorosa que pode existir, é um avanço da medicina”.

A geriatra Ana Claudia Arantes ressalta que poderíamos ter respeito pela morte. “O respeito pela morte traz equilíbrio e harmonia nas escolhas. Não traz imortalidade física, mas possibilita a experiência consciente de uma vida que vale a pena ser vivida […], não morremos somente no dia da nossa morte. Morremos a cada dia que vivemos, conscientes ou não de estarmos vivos.” Essa assertiva tem a ver com a nossa autorresponsabilidade diante da vida, das nossas escolhas, com a forma que enxergamos as pessoas e a maneira que conduzimos as nossas relações interpessoais.

O que estamos fazendo com o tempo que dispomos na terra? O que poderíamos deixar registrado das nossas experiências de vida? Poderia ser algo assim: Eu estive aqui e trouxe alegrias, nutri as pessoas de amorosidade; eu acolhi todos, escutei, amei. Que marcas deixaremos como registro da nossa estada na terra? Essas questões nos trazem reflexões sobre o sentido das nossas vidas. Para que viemos e o que deixamos de contribuição para um mundo melhor.

Temos opções para muitas coisas na vida, mas não para morrer. Não temos escolha. A morte é iminente. Não importa quantos diplomas nós temos, se temos posses ou não, onde moramos e como moramos, a morte chegará. Os medos, preconceitos, as ignorâncias, a negação não nos fazem conversar sobre a morte, a única certeza diante da vida. Precisamos dessa preparação, dessa aprendizagem. Como disse sabiamente o empresário norte-americano da informática e fundador da Apple, Steves Jobs, “Lembrar que você vai morrer é a melhor maneira que eu conheço para evitar a armadilha de pensar que você tem algo a perder. Você já está nu. Não há razão para não seguir seu coração. ”

Ana Claudia diz que entre as fronteiras da vida e morte os momentos que vivenciou com os pacientes jamais poderão ser traduzidos em palavras. O indizível é o mais apropriado termo de traduzir a morte. Na vivência humana talvez a experiência de nascer possa ser tão intensa quanto a de morrer. Talvez pelo desconhecimento dessa experiência é que tememos tanto. E esse momento chegará inevitavelmente em nossas vidas, seja vivenciando a morte de alguém que amamos, seja pela nossa própria experiência de finitude.

A empatia – habilidade de se colocar no lugar do outro – contribui imensamente no processo de morte. A compaixão vai além, ela nos permite compreender o sofrimento do outro, experiência singular para cada pessoa, sem que sejamos afetados por ele. Na compaixão para entendermos o outro, precisamos primeiro entender a nós mesmos e nos acolher. Para cuidar de alguém, para utilizar os cuidados paliativos e suprimir a dor do outro, precisa-se primeiro se conhecer, escolher ser compassivo e ter amorosidade com o outro. Para cuidar do outro é preciso primeiro autocuidado.

Quando o tempo da pessoa está terminando, a geriatra diz que se lembram do que vieram fazer aqui: o amor. Viemos para caminhar na amorosidade, qualquer ato diferente que façamos é um ato falho, um grande equívoco. A pessoa que morre está nua, liberta de todas as vestes físicas, emocionais, espirituais, sociais, familiares. E por estar nua consegue nos ver da mesma forma. Estar ao lado de alguém que morre é desnudar-se também, afirma Ana Claudia Arantes. Estar junto de uma pessoa que se aproxima da morte pode ser um momento de plenitude na nossa vida. A morte do outro ou nossa é um momento raro e até único de estarmos presente totalmente na vida.

Cuidados paliativos ou estar presente com amorosidade no processo de morte de alguém é presenciar a Kalotanásia: morte bela nas palavras da geriatra. Somos energia, tudo pode morrer dentro de nós, menos o amor. Façamos da nossa (breve) vida um caso de amor conosco mesmo, com a vida e com as pessoas. Assim, continuaremos vivos dentro de quem amamos.

Como diz Lenine na música Paciência: “Será que é o tempo que lhe falta pra perceber/Será que temos esse tempo pra perder/E quem quer saber/A vida é tão rara, tão rara.”

*Vera Lúcia Braga de Moura é professora e doutora em História. Gerente de Políticas Educacionais de Educação Inclusiva, Direitos Humanos e Cidadania. SEDE/Secretaria de Educação e Esportes do Estado de Pernambuco. Escreve às quintas-feiras.