Feminicídio: o Estado falhou mais uma vez?

Por

Marcia Yamamoto*

Em 04.01.2021

O crime de feminicídio no Brasil foi tipificado no ano de 2015 com a Lei 13.104 [1], que alterou o artigo 121 do Código Penal, incluindo o homicídio cometido “contra a mulher, por razões do sexo feminino” como circunstância qualificadora do crime de homicídio (§2º) e artigo 1º da Lei nº 8.072/1990, no rol dos crimes hediondos.

Da leitura do artigo 121 do CP (inciso VI do §2º), considera-se feminicídio aquele cometido “por razões de condição de sexo feminino”, que envolvem: “I – violência doméstica e familiar” e “II- menosprezo ou discriminação à condição de mulher”. Além disso, a Lei nº 13.104/2015 inseriu no artigo 121 do CP o §7º, que considera como causa de aumento de um terço da pena ao feminicídio praticado: “I durante a gestação ou nos três meses posteriores ao parto; II contra pessoa menor de quatorze anos, maior de sessenta anos ou com deficiência; III na presença de descendente ou de ascendente da vítima”.

Para vários juristas e organizações sociais, a luta pela prevenção e o combate à violência contra as mulheres tinha ganho novos contornos positivos com a qualificadora do artigo 121 do CP, pois, com a criação de um tipo penal específico, o Direito Penal se fortalecia e os crimes não ficariam impunes.

No entanto, tais mudanças legislativas não alcançam resultados quando se trata de inclusão de políticas públicas tão necessárias para o combate efetivo da violência em decorrência do gênero. Na realidade, tais respostas visam somente ao endurecimento e à celeridade no que tange à punibilidade do agente infrator, em geral mobilizados por aqueles que representam o Estado nas várias esferas de poder. Cito como exemplo a atual meta do Judiciário após fato ocorrido na cidade do Rio de Janeiro:

“(…) Pressionar o Congresso a endurecer a legislação e aumentar as possibilidades de prisão preventiva por crimes de ameaça, injúria e lesão corporal no contexto familiar, que costumam anteceder o feminicídio” [2].

Como regra, o tema é inserido com respostas temporárias diante da cobertura “policialesca”, pois urge da coletividade respostas penais imediatistas. Conclui-se que, embora a sociedade tenha ciência do grande número de vítimas mulheres, o feminícidio ainda é compreendido como resultado da impunidade. Diante de tal enfoque, não se visualiza o eixo central, que é a desigualdade de gênero mantida por uma sociedade nitidamente patriarcal e misógina. Em outras palavras, o punitivismo e o populismo acabam reafirmando a visão dominante.

Assim, o “populismo penal” como fator determinante na empreitada de combate à violência de gênero reforça o ideário de que o endurecimento das penas é forma efetiva na prevenção da violência em razão de gênero, o que acaba ocultando outros propósitos. Nesse sentido, destaca Ana Paula Ricco Terra, (2020, p. 79/80):

“O populismo penal pode encobrir outros motivos políticos que tornam mais fácil a aprovação de uma legislação como o do feminicídio. Por exemplo, aprovar lei penal não envolve previsão orçamentária ou opor-se a uma legislação contra a violência contra a mulher parece negar proteção a estas, o que é malvisto publicamente. Além disso, é uma forma de eximir o Estado da responsabilidade de garantir direitos humanos às mulheres, na medida em que, aprovar uma lei, o Estado aparenta preocupar-se com elas e cumprir com as suas funções, quando na verdade não há investimento real em medidas que façam a diferença, como a promoção de políticas públicas”.

Além disso, as reais motivações que levam um feminicida a cometer atrocidades não sobressaem ao grande público. Visto que os detentores da grande mídia não veiculam, como regra, informações que relacionam os crimes com misoginia ou subordinação feminina. Na realidade, revelam justificativas que colocam a responsabilidade em geral sobre a própria vítima.

Aliás, não se trata de uma critica à liberdade de imprensa, pelo contrário, ressalta-se o papel relevante dos meios de comunicação na divulgação e compreensão dos mais variados temas, como enfatizam Patrícia Tuma Martins Bertolin e Denise Almeida de Andrade (2020, p. 119) quando dizem:

“No Brasil, tanto a Constituição da República, artigos 220 a 224, quanto a lei nº 11.340/2006, artigo 8º, III, preveem diretrizes para as ações dos meios de comunicação, todas em atenção ao combate à violência contra a mulher. Ao lado disso e no mesmo sentido, a Convenção de Belém do Pará, também estabelece no artigo 8, alínea ‘g’, que os Estados incitem os meios de comunicação a agirem em consonância com os ditames nacionais e internacionais”.

Ademais, é sempre oportuno ressaltar que certos tipos de violência são característicos da desigualdade entre os gêneros. Dessa forma, as estruturas de poder seguem inalteradas. Nas palavras de Tatiana Merlino (2017, p. 56/57):

“(…) As discriminações contra as mulheres causam e perpetuam violências que podem atingir o extremo da letalidade. O desequilíbrio que torna as mulheres mais vulneráveis a determinados tipos de violência que podem resultar no feminicídio, como a violência doméstica e a sexual, está baseada em concepções rígidas e desiguais papéis de gênero, construções que determinam os comportamentos femininos e masculinos tidos como ‘socialmente adequados’ em determinado grupo, comunidade ou país.
Além de gerar um desequilíbrio estrutural de poder entre masculino e feminino, a naturalização dessas expectativas sociais abre margem para que a violência aconteça quando uma mulher não cumpre o esperado.
(…)
É comum os homens serem valorizados pela força e agressividade, por exemplo, e muitos maridos, namorados, pais e irmãos, além de outros homens, muitas vezes em posição de chefia e liderança — como no trabalho ou nas religiões — acharem que têm o direito de impor suas opiniões e vontade às mulheres e, se contrariados, podem recorrer à agressão verbal e físico. Com base em construções culturais desse tipo, que vigoram há séculos, muitos ainda acham que a submissão ou o recato são deveres das mulheres e sentem que podem mandar na vida e nos desejos delas. Acreditam, ainda, que a violência é uma resposta legítima diante dos conflitos.

A naturalização dessas construções está nas raízes dos altos níveis de tolerância social e diferentes formas de violência expressos, por exemplo, quando o término de um relacionamento ou uma traição é apontada — por quem cometeu um feminicídio, pela sociedade ou até pelo sistema de justiça — como uma justificativa razoável para se atentar contra a vida de uma mulher”.

Assim, os sistemas de segurança pública, saúde e de Justiça devem se comprometer a desnaturalizar atitudes cotidianas em suas instituições, com vista a romper com o ciclo de machismo nos serviços oferecidos, pois não raras vezes, quando acionados, acabam fracassando por conta da falta de condições.

Além disso, o Sistema Penal pode ser importante instrumento quando utilizado de forma subsidiária. Nesse passo, a sociedade deve ter ciência que muitos casos de feminicídios podem ser evitados quando ela própria se compromete a implantar políticas que visam a reeducar potenciais agressores. Nesses termos, Jaqueline Gomes de Jesus (2017, p. 91/92) aduz:

“A constatação de que muitos feminicídios são evitáveis revela a conivência social e institucional com as violências contra as mulheres e sua raízes culturais, como sentimento de posse sobre o corpo feminino ou a sua objetificação.
(…)

Compreender que uma parcela considerável de crimes poderia ser evitada é abrir espaço para apontar a responsabilidade da sociedade e, sobretudo, do Estado quando não são acionados os mecanismos de proteção às mulheres”.

Por fim, o rompimento de uma cultura de violência só será alcançado quando fatores de perpetuação do status quo e de subordinação da mulher passarem pelo enfrentamento dos intrincados aspectos socioeconômicos e culturais.

Referências bibliográficas
Feminicídio: #Invisibilidademata / organização Débora Prado, Marisa Sanematsu ; ilustração Lígia Wang ; [editor] Fundação Rosa de Luxemburgo. São Paulo : Instituto Patrícia Galvão, 2017.

Feminicídio – quando a desigualdade de gênero mata: mapeamento da Tipificação na América Latina / organizadores: Patrícia Tuma Martins Bertolin, Bruna Angotti, Regina Stela Corrêa Vieira. – Joaçaba: Editora Unoesc, 2020.

[1] < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13104.htm>, acesso em 27 de dezembro de 2020.

[2] < https://www.metropoles.com/brasil/apos-morte-de-juiza-cnj-quer-aumentar-prisoes-preventivas-de-homens-que-ameacam-mulheres>, acesso em 27 de dezembro de 2020.

*Marcia Yamamoto é advogada.

Artigo publicado originalmente no portal da revista Consultor Jurídico.

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Foto destaque: catracalivre.com.br