Esperando a vacina

Por

Mirtes Cordeiro*

Em 08.02.2021

“Deu na BBC. Em 2020, o risco de morrer de Covid-19 no Brasil foi três vezes maior do que no resto do mundo. Os cálculos, feitos pelo economista Marcos Hecksher, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), dimensionam aquilo que muitos de nós já sabemos: no Brasil, prevalece a visão torpe de que a economia é mais importante do que qualquer outra coisa, como se a economia pudesse dispensar essas outras coisas”. (do artigo de Monica Bolle em 06/02)

Tem sido penoso para boa parte dos brasileiros entender o porquê de tanta confusão estabelecida para combater um vírus que já matou mais de 230 mil pessoas, enquanto o resto do mundo se preocupou com a vida das suas populações.

Mesmo estando na fase crítica da pandemia os comportamentos não mudam, nem por determinados governantes, nem pela grande maioria do povo – que se aglomera sistematicamente, mesmo sem necessidade – nem por parte dos que usam os recursos públicos dirigidos aos gastos com a doença para praticar corrupção, como também por parte dos que são omissos quanto às leis vigentes e às regras definidas pela ciência.

Parece que não aprendemos com a nossa experiência histórica de dominação e desrespeito ao longo das nossas vidas em que escravidão, pandemias e pobreza que ceifavam vidas, também já foram motivos de exercício do poder de uma minoria sobre a maioria.

No Nordeste fomos obrigados a conviver durante séculos com as agruras das “secas”, como eram chamados os tempos normais de estiagem da região e que naqueles momentos serviram, e ainda servem, para fortalecer cada vez mais o poder das elites e consolidar uma situação secular de desigualdade que se arrasta até hoje.

Quem de nós, da minha geração, não se lembra dos relatos então ainda recentes sobre os campos de concentração na década de 30, implantados no Ceará pelo poder público com o apoio político das elites cearenses?

“O inverno de 1932 foi esperado com ansiedade pelos sertanejos que, nas suas experiências, sabiam do desespero que seria gestado caso a chuva não aparecesse. Mas, dezembro de 1931 passou anunciando a grande seca que se aproximava. E em janeiro de 1932, os primeiros retirantes começaram a chegar em Fortaleza. Outros resolveram aguardar até o dia de S. José (19 de março), como a última esperança para o inverno”. (Kenia Rios, in Curral dos Flagelados)

Daí pra frente, em seu artigo e outras literaturas, encontramos relatos intensos sobre o que acontecia com relação à verdadeira luta pela subsistência, famílias inteiras fugindo do sertão em busca das cidades que lhes possibilitassem a fuga, geralmente através do trem. Senador Pompeu, por ser uma cidade considerada de porte médio, situada no sertão central do Ceará, com estação de trem, sediou o primeiro campo para impedir a invasão do comércio na capital, Fortaleza. Tratou o governo de concentrar os flagelados em pontos diversos, afim de socorre-los com eficiência e no tempo oportuno.

Foram sete campos criados, entre eles um em Ipu, minha cidade, sendo “instalados próximos às linhas férreas, por onde os retirantes tentavam chegar a Fortaleza. Nas estações de trem, eles eram encaminhados para os campos, com a promessa de trabalho. Sem nenhuma outra opção, seguiam a rota”.(EL Pais)

Na minha cidade, o Ipu, o campo de concentração manteve 6.507 pessoas presas, com orientação espiritual incluindo missas e catequese para que não houvesse atentado ao pudor. Na verdade, que maior atentado poderia haver, senão a fome e a incapacidade de um país em desenvolver políticas para o seu desenvolvimento e da sua população?

No Ceará, enquanto criança e adolescente na minha cidade, assisti de perto o desenrolar macabro da vivência do povo envolvido nessas tragédias. Açudes e estradas, grandes obras públicas, foram construídas em tempos de flagelo. Uma multidão de trabalhadores, homens e mulheres, se reuniam na praça principal para ter o aval de algum chefe político de plantão e seguiam a pé até o local de trabalho, geralmente vários quilômetros. E à medida que a obra avançava, só voltavam a suas casas nos finais de semana, empoeirados, roupas maltrapilhas, carregando um saco nas costas com os pertences e a feira, pagamento pelo trabalho.

Com a modernidade promovendo maior acumulação de riqueza, mais desigualdade, nessa pandemia o auxílio substituiu as obras, mantendo o mesmo espírito da corrupção e no feitio de caridade, sem nenhum vínculo estruturador com a realidade das famílias.

Na década de 50 fomos acometidos por um surto de varíola. Todos em nossa casa padecemos com a doença. Na cidade muitos não resistiram, justamente os mais desassistidos, com organismos debilitados pela fome.

Agora, nós assistimos pela televisão a tragédia do estado do Amazonas como se fosse um filme repetindo o que já aconteceu várias vezes durante o século passado. E não aprendemos com a experiência.

O negacionismo por parte do governo  federal postergou de várias formas as possibilidades de o país ir em busca de vacinas, como fizeram outras nações, e usou recursos públicos para a compra de medicações comprovadamente consideradas ineficazes para o combate `a covid-19. O negacionismo foi seguido de perto pelo parlamento e por instituições médicas que de longe seguiram o rumo dessa história, observando apenas, se negando a posicionamentos concretos em apoio aos profissionais de saúde na frente da batalha.

Até mesmo planos de saúde aderiram ao tratamento precoce distribuindo kits sobrevivência para as pessoas com sintomas da doença, mesmo podendo levá-las à morte. Na minha família, pessoas com sintomas da doença receberam das mãos do médico sob o alerta: “só tome se quiser”

Mas, o importante agora é que estamos à espera da vacina, como se fosse um sonho para alguns, enquanto para outros é motivo de luta política e corrupção. Até quando seremos um país de sonâmbulos, incapazes de perceber o que acontece à nossa volta e, principalmente, o que nos aguarda ao longo desta década? Como fala Bolivar Lamounier, “Sonâmbulos e furibundos”, condição de vida que não direciona o sentimento e não produz as mudanças necessárias para mudar a forma de fazer a política e melhorar a vida da população. Não reconhecemos situações e experiências passadas como ponto de partida para excluir o que serve ou não ao processo democrático.

No combate à pandemia estamos desprezando e subestimando a nossa capacidade de pensar sobre o rumo do país, a construção de políticas públicas fundamentais como a educação, a saúde e renda mínima para a sobrevivência. Nem sabemos o que fazem os ministérios e quais são seus planos. Quando sairmos do sonambulismo e do enfurecimento das redes sociais, constataremos assustados com o que dizem diferentes relatórios de organizações internacionais… “indicam que os milionários ficaram ainda mais ricos durante a pandemia de coronavírus. Os ligados ao setor digital e de novas tecnologias foram os mais beneficiados no período. Ao mesmo tempo, o surto de covid-19 acentua as desigualdades sociais e aumenta a pobreza no mundo, seja nos países desenvolvidos ou nos emergentes”. (notícias web)

Com certeza, continuaremos preocupados com o uso dos instrumentos tecnológicos que a modernidade nos oferece, como conquistar um lugar nas redes sociais, como conspirar melhor para levar vantagem política e como ganhar dinheiro sem trabalho, se possível… e ficar rico.

Eu, o que quero é a vacina, logo, e tudo que ela possa propiciar para seguir vivendo.

*Mirtes Cordeiro é pedagoga. Escreve às segundas-feiras.

Os textos aqui publicados não refletem necessariamente a opinião do blog Falou e Disse.