Criança e violência doméstica

Por

Mirtes Cordeiro*

Em 19.04.2021

A morte do menino Henry Borel, envolvendo a mãe e o seu companheiro, dentro de um apartamento no Rio de Janeiro, precedida de um histórico de dias alternados de “verdadeira tortura”, choca novamente o país, sobretudo pela cobertura da mídia.

Quem não se comove com a tela da televisão mostrando aquela figurinha franzina, frágil, caminhando mancando pelo corredor do apartamento com um celular na mão, em seu momento de solidão, angústia e medo?

O país inteiro lamenta, mas a questão é que Henry é mais uma criança que se junta a uma lista de crianças e adolescentes que cumpriram seu tempo antes de completar 19 anos de idade, por motivos de abuso e violência.

A Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) se apressou em relembrar os dados. Foram os médicos do hospital particular do Rio que se recusaram a entregar o atestado de óbito aos pais de Henry antes de o corpo passar pelo Instituto de Medicina Legal (IML), como manda a legislação.

Segundo dados apresentados pela SBP, entre 2010 e 2020, pelo menos 103.149 crianças e adolescentes com idades de até 19 anos morreram no Brasil, vítimas de agressão, sendo que do total, cerca de 2 mil vítimas tinham menos de 4 anos.

No mesmo período, 2.083 crianças com idade até 4 anos foram mortas por agressão, sendo que, para cada morte de criança por violência, registrada, 20% são subnotificadas e 80% acontece dentro de casa, onde crianças deveriam ser protegidas pelas famílias. Ou seja, estudos apontam que a violência contra essas crianças atinge um número bem maior que os dados estatísticos indicam.

Em seu estudo intitulado “VIOLÊNCIA CONTRA CRIANÇAS E ADOLESCENTES”, a Pediatra Luci Pfeiffer descreve as formas de violência e sugere que a que se destaca é a que acontece dentro da casa e se conceitua como maus tratos, abuso ou violência doméstica e se define como ação ou omissão dos adultos ou responsáveis que possam causar dano físico, psicológico, mental ou social e que possam deixar marcas em seu desenvolvimento ou provocara sua morte.

Durante muitos séculos as crianças não eram consideradas seres em desenvolvimento, mas como futuros adultos criados para assumirem responsabilidades futuras na sociedade.

Na verdade, a criança era considerada um “mini adulto”. São recentes, no mundo ocidental, o surgimento de concepções sobre o desenvolvimento da criança, suas necessidades e sobretudo os seus direitos enquanto criaturas em formação, dependentes de suas famílias, até se tornarem adultos responsáveis por suas vidas. Aliás, mulheres e crianças desde a antiguidade e durante milênios foram consideradas seres inferiores, e ainda o são em algumas sociedades.

Através de muitos estudos realizados, sobretudo na esteira do iluminismo, foi possível compreender que a partir do momento em que a criança passou a ser estudada e analisada não somente por meio de estudos da área da Medicina e Psicologia, mas também sob o viés da Filosofia, Antropologia, História e Sociologia, ampliou-se a visão e consequentemente as possibilidades de compreensão sobre as mesmas. “Neste sentido, atualmente considera-se infância uma categoria social e criança o sujeito. Portanto, criança é o que é e não um ser em devir. Tudo que faz, existe para a criança um sentido, embora este sentido não tenha o mesmo significado social para o adulto. Todo mundo foi criança, mas nem todos tiveram a mesma infância, o que nos leva a apontar na contemporaneidade que existem infâncias e não uma única infância”. (Débora Gomes UNICENTRO)

Um dos primeiros estudos sobre a criança, “História social da criança e da família”, trouxe à luz do conhecimento o fato de que “a infância é uma construção histórica que emerge em um dado momento e em um dado grupo social. Nessa perspectiva o autor levanta a reflexão em torno da questão que aponta para a existência de várias infâncias e não uma única infância para todos os grupos sociais em todos os períodos”. (Philippe Ariès)

No início da revolução industrial as famílias começaram a ter novos interesses sobre a criança, o que era provocado pelas novas formas, modernas, que assumia o novo processo produtivo na época provocando novos tipos de relação entre os grupos sociais. Diz-se que as famílias começaram a desenvolver o interesse pelos processos de aprendizagem, até então desenvolvidos artesanalmente. Nesse contexto, surge também a escola como espaço de aprendizagem a ser utilizado pelas famílias para promover o aprendizado dos seus filhos.

Crianças seguiam sendo tratadas com desprezo e violência o que levou as escolas a reproduzirem a prática do castigo e da palmatória, para protegê-las da inclinação à má conduta ou ao mau comportamento.

Segundo alguns historiadores, “o século XVII é marcado pelo aumento das obras pedagógicas que reforçavam a ideia de que as crianças tinham que ser educadas para atender as necessidades da sociedade que se organizava”.

A Escola se organizou, então sob a égide de várias concepções religiosas e filosóficas, sendo que a que mais se solidificou foi a que se relacionava ao princípio cristão tradicional, que concebe a criança como fruto do pecado original.

Durante vários séculos, desde a sua colonização, o Brasil sofreu influência de todas as correntes que se sucederam até então no que concerne a educação de suas crianças e adolescentes. Mas foi em 1990, em pleno processo de redemocratização, que consolidou sua concepção mais moderna sobre o seu desenvolvimento, através da lei nº 8.069 de 13 de Julho de 1990, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), e apresentou a sociedade brasileira e ao mundo um conjunto de princípios fundamentados na Convenção Internacional dos Direitos da Criança e do Adolescente promovida pelas Nações Unidas e na doutrina de Proteção Integral, referendada no artigo 227 da Constituição Brasileira de 1988.

A partir daí, crianças e adolescentes em nosso país são, por lei, sem distinção de classe social, sujeitos de direitos e a todas elas devem ser asseguradas a proteção e a prioridade absoluta e a proteção integral no planejamento e execução das políticas públicas.

O Estatuto foi o resultado de amplo debate na sociedade e no Congresso Nacional, por legítima pressão dos movimentos sociais organizados e algumas instituições relacionadas à justiça e às igrejas.

Escrevo agora esse texto para lembrar que todos nós convivemos numa sociedade que não soube compreender o significado do Estatuto e da aplicação dos princípios dele emanados para termos uma sociedade melhor, em que garantindo às crianças e suas famílias, sobretudo às que vivem em situação de pobreza, determinados direitos básicos, como alimentação, moradia, educação, saúde e sobretudo, afeto, atenção e cuidados, garantiremos também a nossa autonomia enquanto indivíduos adultos.

Após a aprovação do Estatuto mudanças aconteceram no país, mas crianças e adolescentes, como classifica a pediatra Luci Pfeiffer, continuam sendo vítimas de muitas violências por ela classificadas como violência doméstica, violência social e violência institucional.

A violência contra crianças e adolescentes atinge todas as classes sociais, mas os que mais sofrem são as famílias pobres, onde lhes faltam a ação do estado com políticas públicas estruturadoras.

A mais visível e impactante é a que acontece no seio da família que tem a função primeira de proteger e transmitir conhecimentos, valores, cultura. Cada família, no entanto, se constrói de sua forma, através de suas crenças e experiência de seus ancestrais. No entanto, a estrutura familiar dos mais pobres se fragiliza internamente quando sofre a ausência ou a falta de interação com políticas públicas que lhes garantam direitos básicos, tornando-se assim mais frágeis. No Brasil esses direitos estão assegurados pela Constituição e pelo Estatuto da Criança. Basta que se cumpra.

Temos um histórico de crianças que foram mortas no país afora, pelos pais, padrastos, tios, por policiais, por traficantes e que se expressam nas estatísticas apresentadas pela Sociedade de Pediatria.

Resta-nos perguntar: porque nos acostumamos com a matança de crianças, de jovens, de mulheres? Talvez pelo mesmo motivo que se destroem as matas, os rios, se nega o vírus e seus impactos na nossa vida, não cuidamos dos velhos, cultuamos a ganância… ou não nos tornamos ainda tão “homo sapiens”.

*Mirtes Cordeiro é pedagoga. Escreve às segundas-feiras.

Foto destaque: leijá.com