Sete lições de liderança que aprendi com mulheres negras

Por

Clara Marinho Pereira*

Em 19.04.2021

Que lições as mulheres negras que ocupam a cena pública em presença e espírito têm deixado para nós? Apresentando-nos a negritude como lugar de força, criatividade e conquistas, pretas de diferentes segmentos têm nos deixado ensinamentos preciosos, partilhados conosco a partir da certeza da influência positiva na nossa autonomia. Neste texto, listo 7 lições aprendidas que busco recordar continuamente, por entender que elas nos dão régua e compasso para seguir em frente.

1. “Nossos passos vêm de longe²”.

Se hoje temos a possibilidade de contar com referências políticas e teóricas que municiam nosso ser no mundo e nossas lutas específicas, é porque mulheres de gerações que nos precederam lutaram por estabelecer um campo de práticas e reflexões centrados na mulher negra. À minha possibilidade de usar meu cabelo natural, me aceitar como sou e me perceber bonita, há a articulação entre negritude e psicanálise e estética negra e a política⁴ . À minha possibilidade de estudar gênero e raça de forma articulada na universidade em variados campos disciplinares, precedeu-se a conquista de espaços nas ciências – organizando memórias e debates –; e mais recentemente, de ações afirmativas para o acesso à universidade e à profissão de magistério superior, mais o financiamento de linhas de pesquisa sobre o assunto. Se posso fazer o meu trabalho articulado à questão da mulher negra, seja em empresas ou no serviço público, é porque as mulheres negras brasileiras pautaram a necessidade de uma intervenção específica e sofisticada para este público. Se posso usar a redes sociais para me manifestar, é porque variadas mulheres se apropriaram desse espaço, popularizando o saber científico e ancestral. Nossas capacidades de hoje são frutos de esforços individuais e coletivos, articulados com suor e lágrimas daquelas que vieram antes de nós. Como antes foi feito para nós, as possibilidades e os sentidos das novas gerações de mulheres negras se constroem no agora, com a sua e a minha colaboração.

2. As mulheres negras possuem um ponto de vista privilegiado para entender o mundo.

Eu aprendi que ser mulher negra me permite entender a realidade de forma diferente daquela descrita pelos grupos no poder⁵ . Variadas situações vividas por nós não são vistas como problemas públicos, na medida em que somos vistas como subalternas. Por outro lado, soluções apresentadas para mulheres, no geral, simplesmente não se aplicam a mulheres negras em particular⁶ . Afinal, não somos socialmente integradas em nossa plenitude, somos recebidas com reservas.

Também aprendi que à medida que vão se acumulando outras características em mim e nas minhas irmãs – por serem lésbicas, trans, de pele mais escura, periféricas, trabalhadoras, quilombolas, usuárias de serviços públicos universais, professarem determinada fé, etc. –, isso vai sendo percebido como uma autorização social sucessiva para discriminação⁷ .

Por outro lado, esses mesmos aspectos me permitem enxergar que as mulheres negras têm resolvido parte expressiva dos seus problemas gerando suas próprias soluções. Assim nasceram ONGS como Geledés, Criola e Odara, e tantas outras iniciativas. Sem falar nas muitas questões a serem solucionadas à espera de respostas genuínas, geradas pelas próprias mulheres implicadas. Há enfim, muitos saberes à espera de sistematização, valorização e disseminação, especialmente entre povos e comunidades tradicionais.

Em outras palavras, agora eu já sei que ao identificarmos os problemas coletivos e descrevê-los sob outro ponto de vista – porque estamos fora do jogo – , junto com outras mulheres negras, você e eu podemos tomar vantagem disso, reunindo condições para enfrentá-los.

3. Defina-se, antes que outros façam isso.

“[…] negro tem que ter nome e sobrenome, senão os brancos arranjam um apelido… ao gosto deles”, já disse Lélia González⁸ . A afirmação pode ser extrapolada em vários sentidos.

Individualmente, intelectuais negras relatam a necessidade de um encontro consigo mesma como caminho para o fortalecimento e autodefinição e, então, de afirmação para o mundo, em contraponto a uma definição externa. Dar sentido à própria história passa por orgulhar-se das trajetórias familiares e da ancestralidade africana; passa por assumir objetivos individuais com clareza e reconhecer, ao mesmo tempo, que variadas problemáticas da história individual são coletivas: abandono do estudo para realizar trabalho infantil ou precoce, gravidez precoce, abandono paterno, preterimento afetivo, celibato involuntário, trabalho informal, retorno salarial baixo em relação a anos de estudo, etc⁹ .

Coletivamente, entendo que isso passa por definir explicitamente a missão de nossos coletivos e organizações. Socialmente, por reconhecer a autodeterminação das comunidades tradicionais, de matriz africana e de terreiros, bem como das identidades e sexualidades dissidentes. Em outros termos: não deixar que a narrativas construídas sobre nós sejam apropriadas por grupos sociais que têm o poder de fazê-las, sob pena de nossas individualidades e lutas serem desumanizadas.

4. Busque sua autonomia econômica.

Antes mesmo das profissionais de finanças que traduzem o economês para nós nas redes sociais, permitindo que tracemos estratégias pessoais de sustentabilidade, mães negras buscaram consolidar uma estratégia de autonomia para nós, suas filhas. Mães donas de casa fizeram o máximo para engajar suas filhas no estudo, gerenciando o montante de trabalho doméstico que poderiam realizar. Mães quituteiras e empregadas domésticas buscaram articular seu ofício com vagas em escolas centrais, para que estudássemos em escolas públicas mais estruturadas enquanto estivessem trabalhando. Sacoleiras, camelôs, economizaram o quanto puderam em ciclos econômicos favoráveis. Nossas mães professoras primárias nos transmitiram uma sólida base educativa em casa, pavimentando um caminho mais seguro para a educação secundária e superior. Isto é, antes que as cotas se tornassem realidade, houve um esforço fragmentado, mas identificável, de enfrentamento das hierarquias raciais a partir da educação e da organização financeira familiar¹⁰ . Enfim, um esforço consciente e orientado de ações e mensagens de incentivo que ainda prossegue para que possamos contornar os condicionantes sociais que nos jogam constantemente para a base da pirâmide.

5. A liderança é uma palavra de significado coletivo.

Lideranças femininas negras não surgem do acaso. São mulheres forjadas na luta pelo bem-viver de nossas comunidades, que vão desenvolvendo características como: capacidade de análise da conjuntura da sociedade brasileira e competência em articulá-las com as especificidades das condições de vida da população negra; realização de ações que buscam disputar e modificar os sentidos de nossa sociedade a partir das questões raciais; poder de identificar divergências políticas, entende-las e não considera-las como intransponíveis para a interlocução ou construção de consensos; capacidade de entrever futuros e seus desafios; a partilha das experiências vividas; capacidade de identificar e desenvolver talentos, estimulando a performance individual e coletiva; divisão do mérito das conquistas, entre outras características.

São características que podemos encontrar em variadas mulheres negras na cena pública brasileira de ontem e hoje, situadas desde coletivos à grandes organizações. Uma delas aliás, pôde reunir todas essas qualidades enquanto esteve entre nós – Luiza Bairros –, como rememoraram recentemente Sueli Carneiro, Mônica Oliveira e Vilma Reis em sua homenagem, promovida por Silvany Euclênio¹¹.

6. Não caia na armadilha da aceitação.

Do ponto de vista social, há uma perspectiva branca de “aceitação” das mulheres negras no Brasil. Lélia González descreve três dos papéis subordinados existentes: a mãe-preta, que exerce a função materna para crianças brancas; a doméstica, que abrange a prestação de serviços de baixa remuneração, das residências à espaços públicos; e a mulata, explorada sexualmente na articulação entre turismo e indústria cultural. Essa afirmação não significa que mulheres que ocupem esses papéis sociais sejam inteiramente subalternas, que não realizem estratégias precisas de “hackeamento”. Como González, pondera, por exemplo, foram as mães pretas responsáveis por modificar o português falado no Brasil, realizando a incorporação verbal e simbólica da cultura africana no país. Mas significa que, do ponto de vista dos agentes da discriminação racial, esses comportamentos são esperados de nós.

Ciente desses papéis e de que o caráter do racismo pressupõe não somente nossa sujeição, mas também a desumanização, não há por que buscar ser aceita nesses termos, na medida em que ele supõe o apagamento de nossas individualidades e ambições. No limite, trata-se da negação de nossa cidadania e da plenitude de nossa existência. Dito de outro modo: naturalizações e assédios nos removem da disputa pelo poder. Baixar a cabeça e calar a boca não vai nos salvar. É preciso seguir em frente segundo nossos próprios termos. Digamos quem somos.

7. Cuide-se e acolha-se. Construa redes de apoio e afeto.

Quantas mulheres negras você conheceu ou sabe que se foram cedo demais? As experiências do racismo deixam marcas em nossos corpos e devemos nos atentar a elas. É preciso que estejamos bem segundo diferentes dimensões – mental, física, espiritual, etc. – para que possamos seguir em frente. Não há corpo que possa sustentar uma cabeça pulsante e criativa, e que também sofre, se ele não for cuidado.

Importa dizer que não se trata apenas de uma questão individual. Mulheres negras que têm se colocado na vida pública para apontar ou resolver problemas coletivos têm sido constantemente ameaçadas. Assim, além do autocuidado, a cada passo que se dá na direção do enfrentamento público, é preciso estar fortalecida em redes de apoio e afeto, em que sonhos e inseguranças possam ser partilhados; estar atenta à segurança física e digital; apoiar e fazer parte de iniciativas de ampliação da segurança de defensores de direitos humanos e parlamentares, entre outras coisas. A violência contra mulheres negras no Brasil é uma realidade expressa em números obscenos, que infelizmente também alcança a cena política.

Pra terminar

De modo geral, as mulheres negras que ocupam o espaço público me permitiram entender que não estou sozinha nas minhas dores. Elas têm um componente estrutural, resultante de aproximadamente 400 anos de escravidão e de uma abolição inconclusa que se manifesta cotidianamente. Por outro lado, estou aqui, estamos aqui. Por meio de estratégias individuais e coletivas, transbordamos vida e possibilidades, e nos reconhecemos como portadoras de um futuro justo para a sociedade brasileira. Assim, agradeço às mais velhas e ancestrais que deixam lições e memórias para irmos adiante, ao mesmo que me junto a vocês na ação coletiva para fazer acontecer o que há de vir, posto que não há empoderamento individual sem respaldo coletivo. Afinal, “o futuro é uma mulher negra”; e “eu sou porque nós somos”. Axé.

² Subtítulo de “O livro da saúde das mulheres negras no Brasil”, organizado por Jurema Werneck, Maisa Mendonça e Evelyn White em 2000, a frase tornou-se um lema nos movimentos de mulheres negras.

³ Cf. SOUSA, Neusa. Tornar-se negro. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1983.

⁴ Como faz o Ilê Ayê, todos os anos, na Noite da Beleza Negra.

⁵ COLLINS, Patricia Hill. Aprendendo com a outsider within: a significação sociológica do pensamento feminista negro. Revista Sociedade e Estado – Volume 31, Número 1, Janeiro/Abril 2016.

⁶ A exemplo do adiamento da aposentadoria da mulher para 62 anos feito pela Reforma da Previdência sob o argumento de que as mulheres são mais longevas. Para as mulheres negras, que entram no mercado de trabalho ou na economia dos cuidados sem nem ter saído da infância, são mais dois anos de trabalho potencialmente precário para conquistar uma aposentadoria de 1 salário-mínimo.

⁷ COLLINS, Patricia Hill. Pensamento Feminista Negro: conhecimento, consciência e a política do empoderamento. São Paulo: Boitempo Editorial, 2019.

https://www.geledes.org.br/lembrando-lelia-gonzalez-por-luiza-bairros/

⁹ Cf. BORGES, Rosane. Sueli Carneiro. Coleção Retratos do Brasil Negro. São Paulo: Selo Negro, 2009; GONZÁLEZ, Lélia. Entrevista ao Pasquim. In: RIOS, F.; LIMA, M. Por um feminismo Afrolatinoamericano. Rio de Janeiro: Zahar, 2020.

¹⁰ Cf. entrevistas de pessoas negras em GENÓT, Luana. Sim à igualdade racial. Rio de Janeiro: Pallas, 2018.

¹¹ Cf. tributo realizado em 2020 pelo Canal Pensar Africanamente em https://youtu.be/kvQpvjfDx64

*Clara Marinho Pereira – United Nations Human Rights Fellow of African Descent, Mestre em Desenvolvimento Econômico, com concentração em Economia Social e do Trabalho (Unicamp), Especialista em Planejamento e Orçamento (Enap), Bacharel em Administração (UFBA).

Artigo publicado originalmente no portal Geledeés.

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