A demarcação de terras indígenas e o marco temporal

Por

Deborah Duprat, Manuela Carneiro da Cunha e Oscar Vilhena Vieira

Em 11.06.2021

A Constituição de 1988 é o primeiro documento jurídico nacional a romper com o paradigma da violência, inferiorização e assimilação dos povos indígenas, valorizando o direito fundamental de serem respeitados, assim como suas instituições, culturas e tradições. Para tanto, a demarcação das terras indígenas passa a ser um imperativo, uma vez que território, cultura e identidade são indissociáveis. E a União é explicitamente incumbida de demarcar e proteger essas terras.

O mais importante precedente do STF sobre demarcação é o “caso Raposa Serra do Sol”. Ali se explicitou que a expressão “terras tradicionalmente ocupadas”, constantes do §1º do art. 231 da Constituição, não eram uma reminiscência do passado, mas uma existência concreta na atualidade, segundo usos, costumes e tradições de cada grupo indígena. Não apenas local de moradia, mas também as terras indispensáveis às atividades produtivas e à preservação ambiental, de modo a garantir o seu bem-estar, e as necessárias à sua reprodução física e cultural. Apenas a partir dessa compreensão plena de conformação territorial, é que se estabeleceu a chamada “tese do marco temporal”, ou seja, posse em 5 de outubro de 1988 ou demonstração de resistência a eventual esbulho.

A leitura apressada do acórdão, no entanto, tem gerado equívocos graves. O primeiro deles diz respeito à posse, quando se exige a presença física do grupo em determinada porção territorial, sob pena de sua exclusão no processo de demarcação. Isso é uma distorção do precedente, inclusive porque, na Terra Indígena Raposa Serra do Sol, fazendas em posse de terceiros foram reconhecidas como “terras tradicionalmente ocupadas”. Já em 1961, o ministro Victor Nunes Leal, no RE 44.585, afirmava: “se os índios, na data da Constituição Federal, ocupavam determinado território porque desse território tiravam seus recursos alimentícios, embora sem terem construções ou obras permanentes que testemunhassem posse de acordo com nosso conceito, essa área, na qual e da qual viviam, era necessária à sua subsistência. Essa área, existente na data da Constituição Federal, é que se mandou respeitar”.

O segundo equívoco se refere à concepção de “esbulho renitente”. Para comprovação desse dado, tem-se exigido um efetivo conflito possessório que, mesmo iniciado no passado, ainda persista por ocasião da promulgação da Constituição de 1988, e que se materialize, pelo menos, por uma controvérsia possessória judicializada. Ora, essa é uma concepção civilista de posse e de conflito, não necessariamente partilhada  por muitos grupos sociais. Além do que, até a Constituição de 1988, os indígenas não contavam com legitimidade para ingressar em juízo, uma vez que eram considerados relativamente incapazes e dependiam dos órgãos tutelares. Investigações produzidas em relação ao antigo Serviço Nacional de Proteção ao Índio e mesmo quanto à Funai evidenciam o quanto foram coniventes com desterritorializações de vários povos.

É urgente a retomada da demarcação das terras indígenas no Brasil, de acordo com a literalidade e o espírito do texto constitucional.

Artigo originalmente publicado na Folha de S. Paulo

Foto destaque: Guilherme Cavalli – Conselho Indigenista Missionário (Cimi)

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