O São João que habita em nós

Por

Mirtes Cordeiro*

Em 28.06.2021

Era a festa da alegria (São João)
Tinha tanta poesia (São João)
Tinha mais animação, mais amor, mais emoção
Eu não sei se eu mudei ou mudou o São João

São João Antigo – música de Luis Gonzaga e Zé Dantas

Quem não se emociona ao ouvir essa música de Luís Gonzaga? A música é de Luís Gonzaga e Zé Dantas. Foi gravada em 27 de março de 1957. Não sabiam os autores que que mais de 60 anos depois a música teria tamanha significação face a situação de pandemia que o País atravessa.

Zé Dantas e Luiz Gonzaga

Luiz Gonzaga do Nascimento, o maior sanfoneiro, que se tornou conhecido no Brasil inteiro, nascido no Sertão do Araripe, município de Exu, Estado de Pernambuco, era filho de camponeses sem terra, moradores da fazenda Caiçara. Gonzaga praticamente não frequentou escola: “Fiquei no primeiro ano, não pude continuar”, diz ele em uma de suas entrevistas à imprensa. O pai, Januário, além de trabalhar na terra, tocava sanfona e tinha uma espécie de oficina. (Anotado no texto de Sulamita Vieira – Metáforas do Sertão)

Vivendo no Rio de Janeiro, divulgou a cultura do povo nordestino, seu modo de vida, suas crenças, através de suas canções em parceria com Zé Dantas, Humberto Teixeira e outros, nas décadas de 40, 50 e 60, através do rádio que atravessava a chamada Era de Ouro no processo de comunicação no País e no auge do processo de industrialização.

Era também o tempo do baião.

Em seu trabalho sobre o Rei do Baião, Sulamita Vieira, professora da universidade Federal do Ceará, ressalta que “no seu canto, Luiz Gonzaga evoca um sertão de pobreza, de seca, de abandono e, ao mesmo tempo, canta a fartura misturada a uma espécie de grandeza natural; exalta o amor, as festas, o aconchego, a valentia do “cabra macho” e o atendimento das preces dos sertanejos por parte dos seus santos protetores.”

Tornou-se, portanto, seu Lula, como passou a ser chamado carinhosamente, um cantor e sanfoneiro muito popular.  O cantor, compositor e ex-ministro da Cultura Gilberto Gil disse, em recente entrevista, que Luiz Gonzaga foi “a primeira coisa significativa do ponto de vista da cultura de massa no Brasil”. Além de ser seu primeiro ídolo da música popular brasileira. (Agencia Brasil)

Luiz Gonzaga e Gilberto Gil

Enfrentou o preconceito, contou a nossa história, adotou o vestuário do vaqueiro – um dos símbolos da região – talvez o mais identificado com a visão do colonizador.

Bem que dizia Gonzaga na música intitulada São João Antigo. Por conta da pandemia, a comemoração do São João tem passado por reformulações.

Mas, apesar da pandemia e das restrições em função das regras sanitárias a serem mantidas, no Nordeste do Brasil o São João permanece vivo. Quem não se emociona quando é chegado o mês de junho, ao ouvir o toque da sanfona com os dedos deslizando ao tocar um baião? “A fogueira está queimando, em homenagem a São João, o forró já começou, vamos gente arrastar pé neste salão…”

Só os nordestinos entendem essa magia que brota com as lembranças dos ancestrais e seus costumes no enfrentamento da colonização da região, labutando em terras áridas, com escassez de chuvas e água, esperando sempre de Deus um comando para suas vidas.

Se Deus quiser, teremos chuva. A data limite é sempre o dia de São José, 19 de março.

Pelo segundo ano consecutivo, o São João do Nordeste não foi o mesmo. Mas, não faltou o sentimento, a animação, o canto, a dança, a fogueira acesa, os fogos pelos ares, em muitas casas pelo interior do nordeste. Este ano não faltou o milho verde espalhado pelas feiras com o preço baixo, desmerecendo a carestia que nos rodeia, como se fosse uma benção dos santos festejados: Antônio, João e Pedro… “Com a filha de João, Antônio ia se casar, mas Pedro fugiu com a noiva na hora de ir para o altar…”

O povo do Nordeste cultiva grandes sentimentos, entre os quais a autoestima e a esperança, refletidas na música de Gonzaga… “Hoje longe muitas léguas, numa triste solidão… espero a chuva cair de novo pra eu voltar pro meu sertão (ASA BRANCA, toada. H. Teixeira e L. Gonzaga)

As grandes festas populares foram canceladas, mas o povo se reinventa com as mesmas características e práticas utilizadas para a reinvenção de suas vidas nos momentos de dificuldades e de suas possibilidades, no enfrentamento à pobreza, na convivência com o clima muito árido.

O São João mudou, as regras restritivas foram respeitadas,mas a população, de várias formas, encontrou o caminho para preservar a sua cultura, seu modo de vida.

No Nordeste, o mês de junho, tempo de colheita de milho e feijão da agricultura familiar, além de ser o mês das festas é também o tempo de movimentação da economia. São milhares de fogueiras, de pontos de entretenimento, de barracas funcionando com comidas regionais, queima de fogos e o “baião comendo solto”, com sanfona, zabumba e triangulo.

Mês de São João é tempo do povo do nordeste ganhar dinheiro, o que não vem acontecendo com a pandemia. As vendas foram incrementadas pelo sistema de vendas na internet, através do que chamamos de plataforma. E os espetáculos musicais encontraram amparo nas lives amplamente difundidas. Toda essa mudança realizada com paciência, resiliência e muita criatividade de um povo que já se reinventa sempre que se faz necessário.

E tome São João no Instagram, no Facebook, no Tik tok, no WhatsApp, na televisão, no rádio e todo mundo com seu celular de lado ouvindo o baião. …“e tome xote Mariquinha e tome xote sá Zefinha, hum e tome mais”,na voz de Gonzaga e Dominguinhos.

E quando se viaja para o interior em busca dos familiares e se escuta o clássico de Gonzaga e Zé Dantas “Riacho do navio, corre pro Pajeú, o rio Pajeú vai despejar no São Francisco e o Rio São Francisco vai bater no meio do mar…” se sente o impacto da palavra despejar, como doação de todos os sentimentos que habitam a nossa alma nordestina.

Em Pernambuco foram 17.487 vidas perdidas até 25/06/2021, segundo a Secretaria de Saúde, muitas delas precocemente, não fosse a irresponsabilidade do governo federal na aquisição das vacinas. No Nordeste as mortes significam 30% do que ocorre no país, ou seja, cerca de 153 mil, dos 511 mil mortos pelo País inteiro.

No Semiárido, por exemplo, o vírus atua de forma silenciosa e só é descoberto depois que alguém morre, segundo Weiner Vieira, pesquisador da Fiocruz, referindo-se à subnotificação na região.

Enquanto não passam a pandemia e outras mazelas, seguimos sobrevivendo.

*Mirtes Cordeiro é pedagoga. Escreve às segundas-feiras.

Este texto não reflete necessariamente a opinião do blog Falou e Disse.