Bolsonaro e os jabutis
Ayrton Maciel*
Em 06.07.2021
A pressão dos fatos, indícios, suspeitas e convicções tem provocado declarações de desespero do presidente da República, Jair Bolsonaro. Sem condições de realizar o seu desejo no cargo – proclamar-se ditador, fechando os demais Poderes -, as reações chegam a um limite, o de falsear a realidade, fraudar fatos, fingir-se de democrata e incitar fanáticos. O mais recente episódio confirma. Irritado com a quebra de sigilos de dois de seus filhos – o senador Flávio e o vereador do Rio de Janeiro, Carlos -, Bolsonaro volta a disparar bravatas e ameaças, ancorando-se no imaginário de possuidor de um exército, de ter o apoio do povo e não haver nenhum limite para o seu poder.
O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Alexandre de Moraes, que quebrou sigilos de blogueiros e parlamentares, entre eles Flávio e o Carlos, em investigação sobre uma organização criminosa digital para disseminar fake news e atacar a democracia e o Estado de Direito, levou o presidente ao portão do Palácio da Alvorada, onde Bolsonaro encontrou com a sua cada vez menor corte de evangélicos e fanáticos. Diante de celulares abertos, Bolsonaro falou livremente o que quis, sem interferência, a não ser das corriqueiras frases serviçais de agrado do ego presidencial: “é isso aí, presidente”, “tamos com o senhor”, “conte comigo”, e por aí seguem. De uma tirada só, em longos minutos, o presidente associa temas e fatos distintos e sem relação em formas de ameaça, indignação, inocência, revolta e onipotência.
A começar pelo ameaçador tom de revide, o que lhe é comum, Bolsonaro disse que pode partir para o vale-tudo, porque considera que o STF partiu primeiro, e que as contestações da oposição no Brasil partem do lado “desmamado” e com “superpoderes” que estariam insatisfeitos com a perda de privilégios, sem apontar quais seriam. O presidente garantiu que nunca cometeu um gesto fora da Constituição (como se não tivesse estimulado e participado de manifestações pedindo uma ditadura) e levianamente afirmou que o STF soltou Lula e o tornou elegível para poder o “eleger na fraude (o voto digital, sem impressão em papel)”, mais uma vez não apresentando provas de que houve fraude nas eleições digitais anteriores, inclusive a que o elegeu em 2018..
Por que Bolsonaro faz isso? Apenas para se proteger, deturpar, distorcer, insuflar, conturbar e criar um ambiente de conflagração que lhe respalde a tentativa de um golpe. É isso que ele imagina e planeja: ser um ditador. Tudo lhe parece fácil, se assim quer, tudo em uma cabeça inconsequente. No mesmo vídeo, difundido pelas redes sociais de aliados, o presidente da República diz que “o povo” está ao seu lado – o que Bolsonaro entende por povo são os motociclistas de Harley-Davidson e a classe nacional similar de Copacabana – e repete gratuitamente a acusação de fraudulento o voto digital, jogando para o TSE o ônus de provar “que não houve fraude” nas eleições passadas. Parece piada, mas os fanáticos do portão do Alvorada ululam de ira a cada bravata contra os Poderes e de êxtase a promessa.
No amontoado de jabutis estratégicos e insanidades ideológicas – tudo é uma ameaça comunista, tudo são oposições querendo o socialismo, tudo é o Brasil cercado por países com governos socialistas -, o culto à personalidade e à idolatria é uma via de mão dupla, com os seguidores repetindo “sim, sim” e “é isso, é isso”. Bolsonaro, no vídeo, agride países vizinhos e historicamente amigos: Argentina, Bolívia, Peru, por terem governos de esquerda eleitos. Até o Chile de Sebastián Piñera, um presidente liberal na economia e um país hoje democrático – exclusivamente porque os chilenos estão substituindo a Constituição da época de Augusto Pinochet – é tratado agora com desprezo e sem qualquer protocolo diplomático. Sobretudo, a Argentina de Alberto Fernández é o alvo predileto do ódio de Bolsonaro.
O presidente do Brasil deve se flagelar bastante por não ter condições de executar seus desejos. Imagina que tem o Exército à disposição e que conta com a fidelidade – até possível – das Polícias Militares por suas promessas de paraíso, mas não tem força política. O povo que acredita ter, e deve ter, não é o povo que o Brasil tem em maioria: o da Harley-Davidson e de Copacabana. Entretanto, Bolsonaro delira: no vídeo, afirma que é o único que tem “condições de garantir a liberdade dos brasileiros (ameaçada por quem?)”, volta à questão do “estado de sítio (qual a necessidade?)”, critica novamente “poderes dados (o que não é verdade)” pelo STF a governadores e prefeitos para o combate à covid-19, e repete que “não fechou nenhum botequim na pandemia”.
“Temos que nos ajudar cada vez mais. Nós temos a razão”, “vamos conquistar os idiotas para o nosso lado”, “o povo está do nosso lado”, “se não tiver voto impresso vai ter problema”, “estamos libertando os índios, alguns já estão produzindo”, “os Correios deram lucro”, “estamos privatizando para acabar com os ratos nas estatais”, “estão falando da Covaxin, mas não compramos a vacina”, “não tenho acesso a todos os ministérios (a tramoia é sempre dos outros)”, “quebraram o sigilo (STF no inquérito das fake news) de dois filhos meus, mas não quebraram o de Adélio (autor da facada na campanha de 2018), “evitei saques com o auxilio emergencial na pandemia”… E segue Bolsonaro na combinação de temas sem conexão na fala aos seguidores.
Frases desconexas nos assuntos e entre assuntos. Segundo o ditado, tudo junto e misturado. É Bolsonaro entre o desespero, por se sentir cercado, e as mentiras como arma política e como tática para confundir, enganar e inocentar-se. No mesmo vídeo, o presidente da República não deixa de repetir ataques à imprensa profissional, com a especial predileção pela TV Globo. Acha-se perseguido, possivelmente porque gostaria de ter a imprensa ao seu lado e a imagina nos papéis de porta-voz e de assessoria. Acontece, felizmente, que o mundo não é como o presidente do Brasil imagina e deseja, nem a maioria dos brasileiros quer fazer parte de seus delírios.
Bolsonaro sabe, na lucidez, que o seu mandato corre risco e que terá a conta dos mortos pela pandemia para pagar. Isso o desespera, por isso fala como um desesperado. E não será a única conta. A sabotagem aos governadores, o boicote às medidas preventivas contra a covid-19 e a negação às vacinas – à exceção do esquema de submundo para a indiana Covaxin – são parte da lista de fiados com o país, o qual tem tratado como bodega de mundo subdesenvolvido. Os atos antidemocráticos contra os Poderes da República e as redes de fake news e de propaganda da violência, e os ataques à reputação de autoridades, são contas em aberto. Surge agora o Jair das “rachadinhas”, o Bolsonaro pré-2018, conta que ficará para após o mandato. Muitos se enganaram com os seus discursos e 28 anos de Câmara de Deputados. As contas são de Bolsonaro, mas as faturas são do país.
*Ayrton Maciel é jornalista. Trabalhou no Dario de Pernambuco, Jornal do Commercio e nas rádios Jornal, Olinda e Tamandaré. Ganhador do Prêmio Esso Regional Nordeste de 1991.
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