A quem interessa suprimir a denúncia da tortura?

Por

Belisário dos Santos Jr.*

Em 06.07.2021

A situação carcerária no Brasil ultrapassou todos os limites. Temos em torno de 700 mil presos, segundo dados conservadores, com 250 mil presos mais do que o número de vagas existentes. Entre esses, 32% estão presos sem condenação.

O estado das prisões é dramático. Em termos sanitários, constitui uma punição à parte. Por vezes, se ignora que o preso (a presa) perdeu apenas sua liberdade, não sua dignidade. Além disso, ninguém sabe quem ali governa. Por toda a parte, facções criminosas competem pelo comando com o Estado – em alguns casos, possivelmente em consórcio. Caos total. Total falta de transparência nas informações das autoridades responsáveis. Violações sistemáticas dos direitos humanos, como denunciado inclusive ante instancias internacionais.

Esse panorama levou o Supremo Tribunal Federal (STF), em 2015, por meio da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 347), a proclamar “estado de coisas inconstitucional”, diante de “quadro de violação massiva e persistente de direitos fundamentais, decorrente de falhas estruturais e falência de políticas públicas”.

A tudo, some-se a pandemia e também, e desde sempre, a tortura.

Quando o bom senso indicaria a necessidade de um natural incremento das visitas e do controle da tortura no sistema prisional, veio a suspensão dos trabalhos do Mecanismo Nacional de Proteção e Combate à Tortura (MNPCT), pelo decreto presidencial n. 9831, de junho de 2019.

O MNPCT fora criado, não só em atenção às normas constitucionais e internacionais, mas também em obediência à Lei nº 12.847, de 2 de agosto de 2013, que instituiu o Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, criou o Comitê de Prevenção e Combate à Tortura e o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura.

O extenso rol de atividades atribuídas aos peritos integrantes do Mecanismo, por si, aliado à existência de mandato e outras garantias, incluída sua independência, é indissociável do caráter remunerado do exercício dessas funções e da oferta pelo Estado de condições dignas para o exercício desse trabalho intenso.

Nessa situação caótica, a quem interessa suprimir a denúncia da tortura?

A Comissão Arns e o  Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD) representaram à Procuradoria Geral da República (PGR), imediatamente após a edição da malfadada norma. A PGR ajuizou, de imediato, uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 607) questionando o decreto.

Até então, os peritos do MNPCT já haviam visitado 169 locais de privação da liberdade e emitido a apreciável quantidade de 2.077 recomendações – além de outros relatórios e trabalhos relatados na inicial da PGR.

Quais os interesses para supressão dessa forma de cumprimento da Convenção Internacional contra a Tortura? Essa supressão, ou, pelo menos, o enfraquecimento do Mecanismo Nacional, apenas auxilia os meios paralelos de controle do sistema penitenciário.

Importante entender que esse Mecanismo Nacional não é do governo. É um Mecanismo do Estado, que serve à sociedade. Sua existência como mecanismo preventivo, com independência funcional, é fruto da Convenção Internacional contra a Tortura, como também do Protocolo Facultativo da Convenção que entrou em vigor em 2006.

Assim, em 2020 o IDDD e a Comissão Arns endereçaram ao STF Amicus Curiae, com os argumentos necessários ao reconhecimento da invalidade do Decreto 9.831/2019, que pretendia revogar a lei federal 12.847/2013, autorizadora da adoção da Convenção Internacional contra a Tortura! Apesar de um decreto posterior (10.174) ter tentado minorar em parte a ilegalidade, o certo será revogar o decreto inconstitucional que causou o retrocesso.

O princípio da proibição do retrocesso impede, em tema de direitos fundamentais – seguramente a proteção contra a tortura tem esse caráter –, que sejam desconstituídas as conquistas já alcançadas pelo cidadão ou pela formação social em que ele vive. A Constituição Federal traz como fundamentos do Estado democrático de direito, entre outros, a cidadania e a dignidade da pessoa humana. Desses princípios fundantes e estruturantes da ordem jurídica nacional deriva a consequência de nada poder ser pactuado por autoridade que os afronte.

Assim, em atenção ao princípio da vedação ao retrocesso social, a proteção contra a tortura alcançada pela sucessão de normas a partir da Constituição, das convenções internacionais e da Lei 12.847, não pode retroceder, muito menos via simples decreto. É o que também decorre do artigo 29 da Convenção Americana.

Nesse sentido, a Comissão Arns recomenda vivamente ao Parlamento Brasileiro a aprovação dos Projetos de Decreto Legislativo (PDLs 389/2019 e anexos) em trâmite perante a Câmara dos Deputados, para sustar os efeitos do decreto presidencial, já repudiado por autoridades internacionais de direitos humanos.

Será uma atitude democrática.

*Belisário dos Santos Jr. – Advogado formado pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, atuou na defesa de presos e perseguidos políticos durante a ditadura civil-militar. Integra a Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo e a Comissão Internacional de Juristas. Presidiu a Associação de Advogados Latino-Americanos pela Defesa dos Direitos Humanos. Foi secretário da Administração Penitenciária (1995) e secretário de Justiça e da Defesa da Cidadania (1995-2000). Coordenou o Programa de Direitos Humanos no Estado do Estado de São Paulo (1997). Criou e presidiu a Comissão Estadual de Indenizações por Tortura. Integrou a Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos do Estado Brasileiro (2002/2014). Também fez parte da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil em São Paulo (1985-1990). Foi Presidente do Conselho Curador da Fundação Padre Anchieta e da Fundação Mário Covas. Foi vice-presidente e presidente da Comissão da Verdade da OAB-SP.

Artigo publicado originalmente no portal da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos Dom Paulo Evaristo Arns (Comissão Arns).

Este texto não reflete necessariamente a opinião do blog Falou e Disse.

Foto destaque: Paulo Irion/ Juiz de Direito/Folhapress