A História da África é a nossa História

Por

Adriana Meireles Melonio*

Em 07.07.2021

O ingresso na magistratura, há cerca de cinco anos, despertou a mulher negra que adormecia dentro de mim. E na busca pela minha identidade, em um primeiro momento procurei conhecer e entender as vivências dos meus antepassados familiares. No entanto, ainda existia uma inquietude. Sentia que nós, meus ancestrais e eu, éramos uma pequena parte da imensa multidão de africanos em diáspora.

Mas o que eu sabia sobre a África? Precisava entender quem eram e como viviam meus ascendentes antes de serem forçados a deixar seu lar. Conhecer a vida de pessoas que eramreis, rainhas, grandes chefes militares e grandes sábios, antes de serem sequestrados e trazidos forçadamente para outros continentes, onde tiveram não só a liberdade, mas sua própria identidade ceifadas.

A Lei 10.639/10 tornou o obrigatório o estudo da História da África e dos afrodescendentes, trazendo muitas discussões, inquietações e dúvidas no meio acadêmico e no ambiente escolar. Creio que como eu, a maioria dos brasileiros passou pelos bancos escolares sem estudar o continente de onde descende mais de 50% de nossa população. Tirando os programas de televisão que mostram uma natureza exuberante e uma vida selvagem exótica, propagandas de organizações humanitárias que mostram pessoas sujas, doentes e em agonia, ou reportagens sobre etnias que se enfrentam com violência, o que mais sabemos sobre o continente africano?

Esse desconhecimento não é acidental. Ele faz parte do projeto colonial de apagamento da memória e do uso do poder do discurso como forma de dominação. Segundo o Professor Anderson Oliva, os poucos livros didáticos nacionais que dedicam um capítulo exclusivo ao continente africano, ao abordar um período equivalente a pelo menos mil anos de história e que engloba um complexo e diverso quadro de sociedades e civilizações, o fazem em cerca de dez a quinze páginas, com extremas simplificações e generalizações.

Já nos livros de História do Brasil, os trezentos e sessenta anos de escravidão no Brasil se resumem, em sua esmagadora maioria, a três ou quatro páginas, em que negros são retratados sob a ótica do colonizador e como se tivessem surgido por autogênese nos navios negreiros. Tal fato só reforça o projeto epistemicida e de apagamento identitário.

Considerando que vivemos em um mundo que glorifica, em muitas das vezes, mais as palavras que os atos, a competência última é o domínio da linguagem.

A linguagem é um meio de comunicação através do qual os seres humanos constroem e repassam informações e mensagens. Ela estrutura a percepção que os agentes sociais têm do mundo e a forma como se relacionam nele, sendo-lhe conferida uma eficácia simbólica de percepção da realidade. Por isso, a linguagem comunica a posição que o falante ocupa.

O discurso é a linguagem posta em ação. É uma representação culturalmente construída pela realidade, não uma cópia exata dela, de acordo com Michel Foucault. Logo, quem domina o discurso detém o poder de construir e exibir a representação da realidade de acordo com suas percepções e interesses.

A filósofa portuguesa Grada Kilomba nos ensina que “a língua, por mais poética que possa ser, tem uma dimensão política de criar, fixar e perpetuar relações de poder e de violência, pois cada palavra que usamos define o lugar de identidade”. Percebe-se, assim, que quem domina o discurso detém o poder.

No ano de 2009, a escritora Chimamanda Ngozi Adichie apresentou, na conferência TED (Technology, Entertainment, Design; em português: Tecnologia, Entretenimento, Design), a palestra “O Perigo de Uma História Única”, na qual relata, a partir de suas experiências como mulher africana vivendo nos Estados Unidos, o que acontece quando um determinado grupo de pessoas é reduzido a uma única narrativa.

Como uma de suas vivências, a autora nos conta que, ao sair da Nigéria para fazer faculdade nos Estados Unidos, sua colega de quarto perguntou-lhe onde tinha aprendido a falar inglês fluentemente, tendo se espantado quando Chimamanda relatou que aquela era a língua oficial de sua terra natal. Acreditava que a música nigeriana era tribal, enquanto a africana ouvia Mariah Carey.

A colega de quarto de Adichie tinha a sua história única sobre a África: um continente cheio de exotismo e belezas naturais, mas marcado pela catástrofe, com habitantes doentes e atravessados pela pobreza extrema, esperando pela “salvação branca”.

A visão equivocada sobre o continente africano teve sua gênese no período colonial, que teve início no século XIX e perdurou até a década de 70 do século XX, com a independência das colônias portuguesas. Essa ideia também foi fomentada pela longa história do tráfico transatlântico de escravos para sua manutenção em larga escala, quando foram criadas justificativas enganosas para o comércio de pessoas.

Em Filosofia da História, Hegel afirmou que: “A África não é um continente histórico; não demonstra nem mudança, nem desenvolvimento”. Os povos negros “são incapazes de se desenvolver e de receber uma educação. Eles sempre foram tal como os vemos hoje”. Richard Burton, um dos grandes viajantes europeus do século XIX, relatou, em Missionto Gelele, King of Dahomey, que “o negro, coletivamente, não progredirá além de determinado ponto, não merecerá consideração; mentalmente ele permanecerá uma criança”.

Tal visão negava à África o direito à sua história e aos africanos o papel de sujeitos, e não apenas objeto de dominação, conversão, ou escravização, num momento em que era o próprio tráfico o causador do caos social cada vez mais profundo em diversas partes do continente. Os europeus acreditavam que sua pretensa superioridade sobre os negros de África estava confirmada por sua conquista colonial.

Foi especialmente a partir dos anos 1970 que, com o protagonismo dos estudiosos do continente africano, por meio de agendas próprias e sólidos trabalhos de pesquisa, houve novas luzes para a História da África. Sua atuação enriqueceu a análise geral com os dados de processos históricos locais e inseriu os africanos de forma ativa na construção de uma história que ia além de suas fronteiras continentais.

Não se pode olvidar a urgência desse estudo no Brasil. Afinal, nosso país, entre os séculos XVII e XVIII, recebeu cerca de seis milhões de africanos escravizados. Nós, os brasileiros, somos frutos do amálgama entre africanos, índios e europeus.

No entanto, a ideia da diversidade racial brasileira acabou retirando a identidade de negros e índios na formação do brasileiro e deu ênfase à superioridade do colonizador europeu, aquele que contou a história posta sob a ótica do vencedor. Ainda trouxe uma nova história única: a de nossa identidade mestiça, sem conflitos, hierarquias ou diferenças, mascarando o racismo em nossa sociedade.

Por isso, o estudo da História Africana e de uma História do Brasil Afrodescendente é tão essencial. Para nós, brasileiros afrodescendentes, é imprescindível nos apropriarmos de nossa História e fazer dela alavanca para nossas trajetórias pessoais. É imperativo que dominemos o discurso, que nos tornemos seus autores e narradores, em franca oposição ao projeto colonial predeterminado, trazendo bases para fortalecer a luta contra o racismo e as desigualdades sociais.

*Adriana Meireles Melonio é juíza do Trabalho no Tribunal Regional do Trabalho da 1ª Região. Pós-Graduanda em História da África e da Diáspora Atlântica.

Artigo publicado originalmente no portal Justificando.

Este texto não reflete necessariamente a opinião do blog Falou e Disse.