A menina dos olhos grandes
José Ambrósio dos Santos*
Em 16.07.2024
Primeira a entrar na sala, Maria foi a última a sair. Aprendeu muito no primeiro dia de aula. Percebeu-se preta, pobre e sentiu-se feia. Menina do ‘oião’.
Desde pequenininha Maria sentia que algo nela afastava algumas pessoas. Ouvia xingamentos e risos debochados. Também percebia afastamento de crianças diante da sua chegada em alguns ambientes, além de olhares reprovadores de pessoas adultas. Não entendia as razões e foi crescendo acanhada, envergonhada por não ser aceita como outras crianças.
Corria a primeira metade da década de 1960, época em que as crianças iam para a escola a partir dos sete anos de idade. No seu primeiro dia na escola o dia amanheceu radiante, mas Maria nem percebeu. Foi a primeira a entrar na sala de aula e se sentou na última fileira de carteiras, em uma das extremidades da sala.
Dona Quitéria, a professora, observou todas as crianças e lhe chamou a atenção aquela menina sozinha, no fundo da sala, de cabeça baixa.
Começou a chamada. Chegou a vez de Maria.
– Maria das Graças – chamou a professora.
– Presente, professora – sussurrou a menina.
Dona Quitéria percebeu que Maria não a encarou, permanecendo cabisbaixa.
– Cadê você Maria? – insistiu, para ver se ela levantava a cabeça.
– É a menina do ‘oião’, professora – gritaram algumas crianças em meio a gargalhadas.
– Não vejo graça nessa brincadeira – repreendeu a professora.
– Quem não tem graça é a Maria das Graças, a neguinha do ‘oião’ que mora na Rua da Lama – ouviu a professora em resposta.
Primeira a entrar na sala, Maria foi a última a sair. Aprendeu muito no primeiro dia de aula. Percebeu-se preta, pobre e sentiu-se feia. Menina do ‘oião’.
Dona Quitéria acompanhou a saída dos alunos. Ninguém esperava aquela menininha pobre e preta, enquanto as outras crianças tinham a companhia de pais, avós, irmãos mais velhos.
Maria seguiu devagar, olhar atento aos buracos e as pedras da rua mal cuidada do bairro periférico. A professora decidiu a acompanhar à distância. Observou que o tempo todo ela caminhava de cabeça baixa.
Pouco tempo depois Maria chegou à sua humilde casinha. Foi recebida aos gritos pela mãe:
– Anda, ‘oião’, que o teu almoço vai esfriar e eu não vou esquentar de novo não!
A menininha miudinha apressou o passo e logo entrou em casa.
À noite, ao entrar na igreja para assistir à missa, dona Quitéria percebeu Maria das Graças. Era o dia consagrado à Santa Luzia.
– Olá, Maria!
Maria respondeu discretamente e continuou de cabeça baixa, com uma imagem da santa Luzia e um rosário nas mãos.
– Está rezando, Maria?
– É, professora, mas na verdade estou fazendo uma promessa – respondeu Maria.
– Uma promessa! Certo. Não vou perguntar qual é a promessa, pois o que se diz é que não se deve contar a promessa que se faz.
Maria finalmente encarou a professora.
– Maria, como você é bonita, que olhos lindos!
Surpresa com o primeiro elogio que ouviu em sua vida, Maria também surpreendeu:
– Posso lhe contar a minha promessa, professora?
– Sim, claro, se você quiser!
– A promessa é para a santa Luzia diminuir o tamanho dos meus olhos!
– Como assim, Maria?
– Meus olhos são muito grandes, professora – insistiu Maria, novamente encarando a professora, que percebeu que a menina chorava.
– Além disso, tenho outros defeitos: sou preta e pobre, e as pessoas não gostam.
Dona Quitéria não segurou o pranto. Agachou-se e abraçou a pequena menina. As duas em prantos. Recomposta da crise de choro, tocou o queixo de Maria, ergueu a sua cabeça e lhe disse, com a autoridade de professora:
– Maria, você é linda e não tem nenhum defeito. Se há defeito, se há algo errado, é nas pessoas que a maltratam. Essas pessoas é que necessitam corrigir esse preconceito, essa discriminação. Levante a cabeça, encare todo mundo de igual para igual e siga em frente. Um dia você será uma grande mulher.
Foi então que a professora percebeu o sorriso lindo e agora confiante da menina, de pé, olhando direto nos seus olhos.
*José Ambrósio dos Santos é jornalista, escritor e integrante da Academia Cabense de Letras.
Imagem destaque: Bico de pena e pincel a nanquim do mestre pintor João Brito.
Nota do editor:
Este conto é baseado em fatos ocorridos em uma cidade da Região Metropolitana do Recife. Maria das Graças é nome fictício. A ‘menina dos olhos grandes’ é hoje uma importante profissional liberal cuja história de superação narrada em concorridas palestras vem inspirando e despertando para a conscientização e luta contra a discriminação social, racial, de gênero e do bullying. Atitudes preconceituosas que humilham, maltratam e tolhem o crescimento pessoal e profissional de muita gente.
Foi publicada pela primeira vez em 12.03.2021
É de cortar o coração ler textos como esse e saber que são verídicos. Há muitas Marias das Graças por aí. Inclusive eu fui uma.
É, amiga. Infelizmente. É triste.
Realidade brasileira e qualidade literária
É isso, amigo Rodolfo.