A utopia Freireana pela boniteza do mundo

Por

Nelino Azevedo de Mendonça*

Em 15.07.2020

A pedagogia freireana é esperançosa e esse é um dos seus esteios para que ela seja humanista e libertadora. Em seu livro Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa (São Paulo: Paz e Terra, 1996), Paulo Freire afirma que ensinar exige estética e ética. Daí a sua fala de que decência e boniteza andam de mãos dadas (p. 36). Pensar a boniteza do mundo a partir dessa perspectiva político-pedagógica exige da gente um reconhecimento de que, não podendo tudo, a educação tem papel determinante na transformação da realidade por um mundo mais bonito, como já afirmara Paulo Freire.

Pensar a transformação da realidade na intenção de outro mundo, e que seja marcado pela boniteza, exige a necessária condição de que não devemos falar em um novo mundo, mas de novos mundos. Novos mundos, sim. Pois a diversidade que habita entre nós é demasiadamente grande, plural e multifacetada para caber apenas em modo de ser e estar. A perspectiva monolítica de mundo, que defende a concepção de que somos iguais e que estamos nas mesmas condições existenciais, é uma forma autoritária, indecente e desumanizante de lidar com as diversas formas de ser e estar no mundo. Então é fundamental fortalecer a cultura da resistência contra a ideologia discriminatória que vem aniquilando quaisquer iniciativas de vida e de existência baseadas na afirmação de suas singularidades e diferenças, mas que são catalogadas pelo poder dominante como inferiores, de menor prestígio e socialmente desqualificadas.

A fazedura de um mundo plural capaz de comportar todas as diversidades sem que isso implique num modo de adaptação ou justaposição entre as culturas será fruto de um movimento que envolva todas as pessoas que acreditam e lutam por uma existência mais justa e decente. Certamente, isso quer dizer que é preciso suplantar e superar todas as formas de preconceito, discriminação, injustiças, desigualdades, humilhações, etnocentrismos, racismos, xenofobias, sexismos, homofobias, degradação planetária e todas as formas de violências físicas, psicológicas e simbólicas. Não há boniteza no mundo se essas formas de violências não cessam e continuam aniquilando vidas.

A utopia freireana pela boniteza do mundo expressa essa possibilidade de existências, em que ética e estética se enlaçam de tal forma, que já não é mais possível uma sem a outra. Em que já não é mais possível uma realidade dividida entre os que exploram e os que são explorados, entre os que oprimem e os que são oprimidos, entre os que humilham e os que são humilhados, entre os que roubam e os que são roubados da sua alma, da sua fé, da sua labuta, da sua dignidade, enfim, da sua vida. A utopia freireana, sendo ao mesmo tempo mãe e filha da esperança, é essa possibilidade que ilumina as nossas trilhas e veredas para que possamos alcançar os horizontes distantes, mas possíveis, do inédito viável, ou seja, alcançarmos as nossas buscas, nossos desejos, sonhos, projetos de vida individuais e coletivos.

Paulo Freire entende utopia como o realizável, aquilo que pode se concretizar. Para ele, utopia implica em denúncia da desumanização e anúncio da humanização, denúncia como desvelamento e anúncio como corporificação, constituindo-se, portanto, em práxis. Práxis é a ação que se desenvolve numa máxima coerência entre o que se pensa e o que se faz, entre a teoria e a prática. Essa ideia de utopia não pode ser compreendida sem o sentido da esperança, como condição de busca humana, devido a sua condição de inacabamento. Para Freire, “uma educação sem esperança não é educação” (Educação e mudança. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1979, p. 30).

Nesse sentido, podemos conceber utopia como a centelha que nos acende na caminhada para o ser mais, para a nossa humanização. É a faísca que ilumina os corações e nos faz ver para além dos racionalismos tecnicistas que nos coisificam. A utopia tem morada nos horizontes longínquos, lá onde os nossos olhos não alcançam, mas a nossa alma consegue enxergar. Nossa tarefa, então, é fazer a caminhada até lá e essa caminhada não tem ponto final. A cada horizonte um novo horizonte, pois toda utopia leva a uma nova utopia, afinal todos somos inconclusos, inacabados. Estamos sempre por nos fazer na medida em que vamos nos fazendo. Por isso, podemos dizer que a utopia é o abrigo dos nossos sonhos. Por isso, sempre haverá horizontes para os sonhos e estradas para a nossa caminhada. Não há transformação verdadeiramente revolucionária se a ela lhe falta a dimensão utópica, pois é a utopia essa força motriz que aquece e impulsiona os passos do esperançar, e é dessa forma que teremos um mundo onde as pessoas poderão construir a sua humanidade.

A boniteza do mundo tomará corpo no resplandecer de uma manhã feita a várias mãos e pés de mulheres e de homens que caminham, lutam e buscam liberdade e libertação. Essa aurora será feita a custo de dores, lágrimas e pesares, mas também de abraços, risos e alegrias. Uma boniteza que se veste de todas as cores, de todas as formas e de todos os sabores e paladares.  Uma boniteza que de tão bonita quer se mostrar para dizer da solidariedade, da cooperação, do carinho, do afeto e do amor.

*Nelino Azevedo de Mendonça é professor, mestre em Educação e membro da Academia Cabense de Letras. Escreve às quartas-feiras.

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