Muhammad Ali: o boxeador que desafiou o mundo dentro e fora dos ringues
ICL Notícias
Em 12.02.2025
Muhammad Ali não foi só um campeão nos ringues. Ele usou sua voz contra a guerra do Vietnã, enfrentou o racismo e mostrou que um atleta pode ser muito mais do que um espetáculo
Muhammad Ali não foi apenas um dos maiores pugilistas da história. Ele fez do boxe um palco para o confronto entre oprimidos e opressores. Enquanto lutava dentro do ringue, também desafiava a ordem racial dos Estados Unidos, recusava-se a servir em guerras imperialistas e usava sua voz para denunciar injustiças.
Ali mostrou que ser campeão não era só erguer cinturões. Sua trajetória passa pela recusa em ser chamado de “Cassius Clay”, pela perseguição que sofreu após se negar a lutar no Vietnã e pela forma como enfrentou o racismo sem abaixar a cabeça.
Neste artigo, você vai entender por que Ali não foi só um atleta, mas um símbolo da resistência negra e da luta por justiça.
Quem foi Muhammad Ali?
Muhammad Ali não foi apenas um campeão de boxe. Ele usou sua fama para enfrentar o racismo, denunciar o sistema e defender os direitos dos negros nos Estados Unidos.
Nascido Cassius Marcellus Clay Jr., em 1942, ele ganhou notoriedade pelo talento no ringue e pela ousadia fora dele. Suas provocações eram mais do que jogadas de marketing: eram declarações políticas.
Ali desafiou a forma como a sociedade via atletas negros. Ele não aceitava a posição de submisso que esperavam dele. Foi perseguido por isso, perdeu títulos, mas nunca recuou. Sua trajetória atravessa décadas e segue influenciando movimentos antirracistas no mundo inteiro.
Infância e primeiros passos no boxe
Muhammad Ali nasceu em Louisville, Kentucky, um estado marcado pela segregação. Cresceu vendo brancos e negros vivendo em mundos separados, com direitos e oportunidades desiguais. Sua infância foi um reflexo dessa estrutura racista que dominava os Estados Unidos.
Aos 12 anos, teve sua bicicleta roubada. Indignado, disse a um policial que queria encontrar o ladrão e dar uma lição nele. O policial, Joe E. Martin, que também era treinador de boxe, sugeriu que ele aprendesse a lutar. Ali aceitou e nunca mais parou.
A partir dali, o jovem começou a treinar com intensidade. Na adolescência, acumulou títulos amadores e construiu uma sequência de vitórias marcantes.
Foram seis títulos Golden Gloves de Kentucky, dois títulos Golden Gloves nacionais e um título nacional do Amateur Athletic Union (AAU). Em 1960, aos 18 anos, foi convocado para representar os Estados Unidos nas Olimpíadas de Roma e conquistou a medalha de ouro na categoria meio-pesado. Ali voltou para casa com o ouro olímpico, mas logo percebeu que o racismo não se importava com sua vitória.
Ele esperava que o título abrisse portas, mas ainda era um homem negro em um país onde isso significava ser tratado como cidadão de segunda classe. A medalha não lhe deu direito a frequentar os mesmos restaurantes que os brancos. Foi ali que ele entendeu que sua luta seria maior do que o boxe.
A ascensão no boxe profissional
Desde o início da carreira, Muhammad Ali chamou atenção por seu estilo ousado e personalidade carismática. Diferente da maioria dos lutadores da época, que preferiam se concentrar apenas na técnica, Ali usava as palavras como arma. Provocava seus adversários, fazia previsões de nocautes e usava o ringue como um palco.
Mas sua autoconfiança não era vazia. Ele possuía um jogo de pernas incomum para um peso-pesado, uma movimentação leve e uma velocidade impressionante. Seus golpes eram rápidos e precisos, sua esquiva parecia desafiadora e seu estilo de luta rompia com os padrões convencionais do boxe.
Ainda jovem, Ali mostrava que queria mais do que vitórias. Ele queria ser lembrado. Em entrevistas, deixava claro que não se via apenas como um lutador, mas como uma figura histórica em construção. E ele estava certo.
A conquista do primeiro título mundial
Depois das Olimpíadas de 1960, Ali ingressou no boxe profissional com um objetivo: ser campeão mundial. Seu talento e estilo provocador fizeram com que subisse rapidamente no ranking. No início da carreira, acumulou vitórias expressivas e performances que levaram o público a enxergá-lo como o futuro da categoria.
Foi assim que, em 25 de fevereiro de 1964, com apenas 22 anos, Ali teve sua grande chance: desafiar o campeão mundial dos pesos-pesados, Sonny Liston. Liston era um oponente temido, dono de um soco devastador e de uma presença intimidadora.
A imprensa não via em Ali chances reais de vitória. Ali, no entanto, acreditava em si mesmo mais do que qualquer um. Durante as coletivas de imprensa, provocou Liston sem medo. Chamou o campeão de “grande e feio” e prometeu derrotá-lo. Antes da luta, Liston sequer se deu ao trabalho de levar as provocações a sério.
No ringue, a história foi diferente. Ali se movimentava rápido demais para Liston. Seus jabs entravam limpos, enquanto ele dançava e escapava dos ataques do adversário. O então campeão parecia frustrado, incapaz de acompanhar a velocidade do jovem desafiante.
No sétimo round, Liston não conseguiu mais voltar para a luta. Muhammad Ali era o novo campeão mundial dos pesos-pesados. Foi nesse momento que ele olhou para as câmeras e disse:
“Eu sou o rei do mundo!”
Mais do que conquistar um título, Ali conquistou um novo status. Aquele garoto que falava demais e que ninguém levava a sério agora era o melhor do mundo.
A polêmica mudança de nome
Poucos dias depois da vitória contra Liston, Ali chocou o mundo novamente. Ele anunciou que havia se convertido ao islamismo e se juntado à Nation of Islam, organização religiosa e política conhecida por suas críticas ao racismo nos Estados Unidos.
Junto com a conversão, veio a mudança de nome. Cassius Clay deixou de existir. Ele agora era Muhammad Ali.
A decisão causou reações imediatas. A mídia e grande parte do público rejeitaram a mudança, insistindo em chamá-lo de Cassius Clay. Para muitos, especialmente a população branca conservadora, aquilo era inaceitável. O nome Clay vinha de uma família escravocrata e era um símbolo da herança da escravidão. Ali não queria mais carregar esse fardo.
Ele fez questão de deixar isso claro:
“Clay era o nome de um homem branco. Era um nome de escravo. Eu não sou mais Clay. Não sou mais escravo.”
Mas essa nova identidade não foi aceita facilmente. Floyd Patterson, ex-campeão dos pesos-pesados, enfrentou Ali em 1965 e insistiu em chamá-lo de Cassius. Durante a luta, Ali prolongou o combate, punindo Patterson e dizendo: “Diga meu nome! Quem sou eu?”
O mesmo aconteceu em 1967, quando Ali enfrentou Ernie Terrell. O adversário também se recusava a chamá-lo de Muhammad Ali. Durante doze rounds, Ali castigou Terrell, perguntando repetidamente: “Qual é o meu nome?”
Ali não queria apenas vencer. Ele queria ser respeitado.
A mudança de nome foi um marco. Ali deixou de ser apenas um atleta para se tornar um símbolo de resistência. Ele não lutava apenas contra os adversários no ringue. Lutava contra o racismo, contra o sistema e contra aqueles que não aceitavam que um homem negro fosse dono da própria história.
O ativismo e a recusa em lutar no Vietnã
Ali não se limitou a nocautear adversários no ringue. Ele também desafiou o racismo, o imperialismo e a máquina de guerra dos Estados Unidos. Em 1967, no auge da carreira, recebeu a convocação para servir no Exército durante a Guerra do Vietnã. Recusou sem hesitar e deixou claro por quê:
“Nenhum vietcongue jamais me chamou de crioulo.”
A resposta veio rápido. O Estado não aceitaria que um atleta negro, milionário e famoso ousasse desafiá-lo. Ele foi banido do esporte, perdeu seus cinturões e foi condenado a cinco anos de prisão. Conseguiu recorrer em liberdade, mas ficou afastado dos ringues por três anos e meio, justamente no auge de sua capacidade física.
Ali foi perseguido porque não abaixou a cabeça. Ele expôs o racismo e a hipocrisia do governo dos EUA, que exigia que jovens negros morressem por uma guerra que não era deles, enquanto lhes negava direitos básicos dentro do próprio país. Sua postura transformou o boxeador em um ícone da luta contra o sistema.
O retorno triunfal e as lutas históricas
Ali voltou aos ringues em 1970 e, no ano seguinte, enfrentou Joe Frazier na luta apelidada de “O Combate do Século”. Dois invictos, um cinturão em jogo. A expectativa era enorme. Frazier venceu por decisão dos juízes, mas a rivalidade entre os dois estava longe de terminar.
Ali teve sua vingança em 1974, na luta que mudaria tudo: “The Rumble in the Jungle”, contra George Foreman, no Zaire (atual República Democrática do Congo).
Foreman era o campeão mundial, dono de um dos socos mais brutais da história do boxe. Ali, já veterano, era considerado azarão. Mas ele surpreendeu o mundo com a estratégia do “rope-a-dope”: deixou Foreman gastar sua energia desferindo golpes enquanto se protegia. No oitavo round, Foreman estava exausto. Ali atacou e nocauteou o campeão, recuperando seu título mundial.
No ano seguinte, veio outra batalha épica: “The Thrilla in Manila”, sua terceira e última luta contra Frazier. Cada um já acumulava uma vitória contra o outro, mas dessa vez, foi uma guerra. Um duelo brutal, de resistência e dor. No 14º round, Frazier não conseguiu mais se levantar. Ali venceu, mas pagou um preço alto. Ele descreveu essa luta como “o mais perto da morte que já estive”.
O declínio e o diagnóstico de Parkinson
Nos anos seguintes, Ali continuou lutando, mas o desgaste era visível. O corpo já não respondia como antes. Em 1980, enfrentou Larry Holmes e sofreu uma das piores derrotas da carreira. Angelo Dundee, seu treinador de longa data, tomou a decisão de interromper a luta para evitar que Ali sofresse danos irreversíveis.
Mesmo assim, Ali ainda fez mais uma luta, em 1981, contra Trevor Berbick. Perdeu novamente. Ali sabia que era hora de parar. Pouco depois, anunciou sua aposentadoria.
Três anos depois, veio o diagnóstico: Mal de Parkinson.
Seu corpo, que tantas vezes desafiou os limites, agora enfrentava um inimigo invisível. A doença degenerativa comprometeu seus movimentos e sua fala, levantando discussões sobre os impactos dos golpes sofridos ao longo da carreira.
Ali nunca aceitou o silêncio como opção. Mesmo debilitado, seguiu ativo, colocando sua imagem a serviço de causas sociais e políticas. Em 1990, mostrou mais uma vez seu peso no cenário global ao viajar ao Iraque para negociar com Saddam Hussein a libertação de 15 reféns norte-americanos.
Sua luta contra o racismo não era solitária – ele esteve lado a lado com Martin Luther King, Malcolm X e Nelson Mandela, três figuras que, assim como ele, desafiaram o sistema e enfrentaram as consequências de não abaixar a cabeça.
O legado fora do esporte
Ali nunca foi apenas um atleta. Fora dos ringues, manteve sua influência global. Além de lutar por direitos humanos, em 1996, emocionou o mundo ao acender a pira olímpica nos Jogos de Atlanta, já com sinais avançados do Parkinson. O momento foi simbólico: o homem que desafiou o sistema agora era celebrado por ele.
Ali morreu em 3 de junho de 2016, aos 74 anos. Seu funeral em Louisville reuniu milhares de pessoas, de anônimos a líderes políticos. Entre os que carregaram seu caixão estavam ex-campeões como Mike Tyson e Lennox Lewis, além do ator Will Smith, que o interpretou no filme Ali, lançado em 2002.
Ali não foi apenas um boxeador. Foi um símbolo de resistência. Seu legado não está só nos títulos ou nas lutas épicas, mas na coragem de enfrentar o sistema e pagar o preço por isso. Ele provou que ser o maior do mundo não é só vencer no ringue – é nunca se curvar diante da injustiça.
Os filhos de Muhammad Ali
Ali teve nove filhos, cada um seguindo caminhos distintos, mas todos carregando parte de sua herança.
Entre eles, Maryum Ali se destacou pelo trabalho como assistente social. Atuando em comunidades marginalizadas, ela tenta oferecer oportunidades para jovens que cresceram cercados pela desigualdade e pelo sistema penal americano. Sua atuação foi além da teoria: Maryum participou do reality “60 Days In”, onde se infiltrou em uma prisão para expor as condições desumanas do sistema carcerário dos EUA.
Outra filha que ganhou destaque foi Laila Ali, que seguiu os passos do pai e fez história no boxe. Diferente de Ali, que teve derrotas ao longo da carreira, Laila se aposentou invicta, provando que o legado do pai continuava vivo nos ringues.
O sobrenome Ali carrega mais do que títulos e troféus. Ele é sinônimo de resistência, de enfrentamento ao sistema e de luta por mudanças. E seus filhos, cada um à sua maneira, continuam esse legado.
Por que Muhammad Ali continua importante?
Ali não foi apenas um pugilista. Ele usou sua visibilidade para desafiar a opressão, enfrentou o racismo institucional e se recusou a compactuar com uma guerra injusta. Seu impacto ultrapassou os ringues e redefiniu o papel de uma figura pública engajada.
Nos Estados Unidos dos anos 60, um atleta negro que falava abertamente e não aceitava se submeter às regras impostas pelo sistema era visto como uma ameaça. Ali percebeu isso cedo e não hesitou em se posicionar.
Ele escancarou o racismo que tentava silenciá-lo, rejeitou ser instrumento de propaganda do governo e provou que a grandeza de um lutador não se mede apenas pelos títulos, mas pelas batalhas que decide enfrentar.
O esporte sempre esteve ligado à política, e Ali soube explorar isso como poucos. Sua trajetória ensina que ser o melhor na própria profissão não basta se essa conquista não for usada para algo maior. Mais do que um campeão dos pesos-pesados, ele se tornou um símbolo da resistência — alguém que pagou um preço alto por desafiar o poder e, por isso, se tornou eterno.
Conclusão
Muhammad Ali foi muito além do boxe. Ele provou que um atleta pode transformar sua plataforma em um espaço de luta política e que a grandeza não está apenas no desempenho esportivo, mas na coragem de se posicionar.
Enfrentou a segregação racial, desafiou o governo ao se recusar a lutar no Vietnã e arcou com as consequências. Nunca recuou. Seguiu firme, denunciando injustiças e inspirando gerações.
Para Ali, ser campeão não era só erguer cinturões. Era resistir, manter-se de pé diante das adversidades e nunca abaixar a cabeça. Por isso, seu nome segue vivo. Está nas falas de ativistas, na luta contra o racismo e na lembrança de que desafiar o sistema pode ter um custo alto — mas também pode mudar o mundo.
Imagem – Getty Images